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Técnicas Sanguíneas — Capítulo 33
No qual, depois de três anos e meio, Daisuke finalmente assiste um filme.
Tempo estimado de leitura: 14 minutos
Então, começam oficialmente os capítulos da terceira temporada.
Caso vocês não tenham visto, tem uma recapitulação das duas primeiras temporadas no site.
Vocês sabem que eu adoro ouvir o que os leitores estão achando — pedaços que foram tocantes, divertidos, teorias, ships, questionamentos, etc. Vocês podem escrever seus comentários e reações respondendo o e-mail, ou postando numa rede social de sua escolha com a hashtag #TécnicasSanguíneas. Eu sou mais ativa no Bluesky, mas vou me esforçar pra ver o que está acontecendo no Instagram também.
E agora, sem mais delongas, o capítulo.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.
Capítulo 33
No qual, depois de três anos e meio, Daisuke finalmente assiste um filme.
Daisuke inspirou, e considerou isso uma péssima decisão.
O ar estava pesado, não num lance espiritual, mas num lance bastante realista de espaço que não era arejado há meses. O porão da delegacia, adaptado para se tornar sua cela, tinha uma janela minúscula, pintada de preto para seu conforto, e mantida fechada para o conforto dos caçadores. Que ideia assustadora, o perigoso vampiro Daisuke amassando as orelhas para conseguir colocar a cabeça pra fora, com o risco de não conseguir colocá-la de volta pra dentro. Praticamente um convite para sua fuga ousada… não fosse o fato que ele havia se entregado voluntariamente, e não tinha para onde ir.
Sabia que Akihito nunca aprovara que Haruka tivesse um segunda-classe, então agora que ela havia aparentemente se cansado de Daisuke, era a oportunidade perfeita para se livrar dele. Os territórios de Akihito e seus aliados não eram mais seguros, Wilson era um psicopata, e não tinha mais moeda de troca com Constantino. Sua única opção era a área neutra, onde em vez de lidar com cada um deles individualmente teria que lidar com todos.
A delegacia lhe parecera a escolha mais lógica… quantos meses atrás? Perdera a conta. Agora quando adormecia era por dias ou semanas de uma vez, seu corpo tentando preservar as forças. O que sentia ao acordar era uma espécie de insônia maníaca, como se toda a energia que juntara ao longo dos meses estivesse sendo usada de uma vez num último esforço para caçar, antes que ficasse ainda mais debilitado pela falta de alimento. O pobre corpo vampiro agia por instinto, ignorando que Daisuke não podia beber sangue humano.
Às vezes, depois de uma visita de Charlotte ou Salado, Daisuke ficava sentindo o perfume suave do sangue desaparecer aos poucos. Charlotte sempre cheirava a medo, e isso colocava seus sentidos predadores em alerta. Salado, abençoado Salado, o tratava com quase normalidade, mais agoniado pela aparência abatida de Daisuke do que por suas presas. Apesar de fraquinho, o cheiro do cientista estava misturado com o ar estagnado da cela. Ele fora sua última visita, então.
Daisuke abriu os olhos. O fato de que eles demoraram para se ajustar à escuridão era um sinal do quão exausto estava. Quando se acostumou com a pouca luminosidade, identificou a pequena câmera de visão noturna que os caçadores de vampiro usavam para monitorá-lo. Ergueu uma mão num aceno displicente, e sussurrou:
— Oi, Sal.
Daisuke não era capaz de dizer se a resposta veio imediatamente e sua percepção de tempo é que estava prejudicada, ou se Salado esperou alguns minutos antes de dizer, pelo alto-falante:
— Ei, Dai! Pronto para assistir o nosso filme?
O vampiro sorriu.
“Então ele lembrou.”
***
Salado havia montado um projetor na cela, o que Daisuke considerou criativo e atencioso. Quando fizera o pedido, estava imaginando um televisor meio velho equilibrado em uma cadeira, apenas o mínimo do mínimo, e francamente ele não iria se importar. Estava há anos sem ver um filme, o breve período entre ganhar o celular e deixá-lo com Hana preenchido por joguinhos e aplicativos para aprender japonês. Havia pensado com carinho em voltar a assistir anime. Parecia tematicamente apropriado. Mas no fim preferiu não se arriscar, ansioso com a possibilidade de Haruka querer que ele justificasse sua escolha de mídia da mesma forma que precisara justificar cada aplicativo baixado. Se dividia entre imaginar cenários onde ela começava a apontar anacronismos e inconsistências históricas nos seus animes de samurai; e outros onde precisava explicar a ela tramas e clichês modernos. O que deixaria Haruka mais fora do seu elemento: a tara em roupinhas de empregada vitoriana, ou lutas de robô gigante?
— E aí, como está se sentindo? — Salado perguntou ao entrar na sala.
— Você está gravando? — Daisuke perguntou, e como resposta o cientista apontou para um microfone na lapela do jaleco. Coletaria o depoimento de Daisuke em áudio primeiro, e depois transcreveria as notas. Os caçadores precisavam aproveitar essa oportunidade única de ver como os vampiros reagiam a situações de estresse e privação.
Daisuke assentiu, e pensou um pouco antes de continuar.
— Comparativamente eu me sinto ótimo. Eu ainda estou morrendo de fome, mas tirando isso eu me sinto menos cansado do que os últimos meses, mais capaz de me concentrar. Como se eu tivesse tido uma ótima noite de sono. Mas isso me deixa um pouco ansioso, porque eu não sei o quanto vai durar, e quando eu percebo o contraste entre como eu estava antes e como eu estou agora, eu fico com medo de ficar incapacitado de novo. Indefeso. E eu também não gosto dessa sensação de que o mundo está indo pra frente sem mim. Eu queria estar acordado para as coisas.
Salado não tinha como entender. Ele não havia acabado de se tornar “tecnicamente imortal”, e nunca estivera em coma. Mas ele conseguia ter empatia, e ouviu o relato de Daisuke com um sorriso triste. Daisuke sacudiu a mão como se quisesse afastar um inseto.
— Mas chega de falar disso. Que filme você escolheu pra nós?
— Bom, eu acabei não perguntando que tipo de filme você prefere, então eu escolhi algo genérico. Eu pensei em “A imbatível Garota Esquilo 2”.
Daisuke nem sabia que tinha um “A imbatível Garota Esquilo 1”, e estava fascinado com o rumo que os filmes de super-herói estavam tomando. Isso prometia ser ou muito bom, ou muito ruim. Salado ligou o projetor e começou a se dirigir à parede, com a clara intenção de se sentar para assistir o filme ao lado de Daisuke.
— Espera.
O cientista parou, confuso.
— Você devia pegar uma pipoca sabor bacon, ou gorgonzola.
— Eu achei que comida sólida era ruim pra você.
— E é. A pipoca não é pra mim. É pra você.
— Eu não estou com fo…
— É pra ver se o cheiro do bacon disfarça o cheiro de sangue.
Salado arregalou os olhos, e por um instante o coração dele acelerou, e foi como se alguém tivesse borrifado perfume no ar. Daisuke começou a salivar. Respirar fundo para se acalmar era um hábito, mas seria contraproducente nesse momento. Em vez disso parou de respirar e abriu e fechou as mãos devagar, se concentrando dos movimentos.
“Eu controlo meu corpo, eu não vou parar na garganta dos outros por impulso.” Ele repetiu como um mantra.
Só notou que havia fechado os olhos quando ouviu o “click” da porta trancando atrás de Salado. Não podia culpar o ex-colega de trabalho por fugir.
— Tem alguém na escuta? — perguntou à sala vazia. — Eu vou ver se consigo levantar e alongar um pouco.
Preferia avisar antes de fazer movimentos mais amplos para evitar que os caçadores de vampiro ficassem ariscos. Já tinha ouvido falar de armamento pesado com munição amaldiçoada, e não queria descobrir veracidade dos rumores agora que a criatura da noite era ele.
Daisuke sentiu todos os músculos protestarem contra o movimento, mas estava feliz porque tinha energia para ficar de pé e alongar. Quando era humano fazia apenas o mínimo de exercício necessário para se manter na força policial, e, mesmo não sendo particularmente fã do exercício, a inatividade atual se tornara enlouquecedora. Não se sentia com energia o suficiente para pedir pra usar a esteira, mas deu uma volta inteira pela cela andando devagar. Ainda ficava impressionado com o tamanho da sala que haviam liberado para ele.
Finalmente se sentou no canto mais distante da porta, e ficou aliviado quando Salado voltou com um balde de pipoca fedorenta. Ele escolhera o gorgonzola, então.
“Eu fiquei com medo de você ter cancelado o cinema”, Daisuke pensou, mas não ousou dizer isso em voz alta. Ele podia estar há… ainda não sabia quantos meses… sem alimento, e trancado no porão de pessoas treinadas para matar criaturas como ele, mas morreria antes de demonstrar esse nível de vulnerabilidade. Em vez disso perguntou:
— O que tinha nessa sala antes de vocês transformarem ela numa cela?
— A sala de evidências.
Daisuke piscou.
— Nós temos uma sala de evidências?
— Nós tínhamos uma sala de evidências. — Salado corrigiu, rindo. — Mas tirando os primeiros anos, quando eles deixavam cadáveres de pessoas mordidas por vampiros por uns dias por medo delas virarem vampiras também, ela quase nunca foi usada. A gente não é muito de encontrar adagas amaldiçoadas e tabuleiros de ouija possuídos, então não tem muita coisa pra guardar.
Com Daisuke no canto da sala, Salado pôde se acomodar perto da porta, o mais distante possível dele, e a distância e a pipoca quase camuflavam o cheiro do sangue.
— Por que você acha que na Cidade Alfa só temos vampiros?
— Eu não sei. Eu gostava de ouvir as teorias do Ed, o Nerd… — Salado se calou, pensativo. Pelo controle remoto, acionou o projetor e o filme. — Talvez seja só territorialismo mesmo.
E então ficaram em silêncio, porque os créditos de abertura haviam começado, e a Garota Esquilo precisava salvar o universo.
***
Da sala de controle, Charlotte assistia Daisuke assistir um filme.
Durante a estadia prolongada de Daisuke na delegacia, ela sentira um pouco de inveja de Salado. Inveja da ausência de traumas que o deixava agir com quase normalidade diante de Daisuke, e inveja do tratamento quase caloroso que Daisuke lhe oferecia em troca. Mas o vampirismo mudava as pessoas, e o Daisuke que abraçava os joelhos e se inclinava pra frente prestando atenção nas aventuras da Garota Esquilo não era o mesmo Daisuke se sentara na primeira fila de convidados durante seu casamento. Como vampiro ele não podia mais envelhecer, mas a inanição marcava seu rosto de maneira semelhante. Seus gestos eram mais econômicos, calculados, e o olhar era sempre analítico. Ela se perguntava se ele percebia essas mudanças em si mesmo, e se as lamentava.
Como filmes de super-herói andavam impossivelmente longos, Charlotte viu quando a energia de Daisuke começou a acabar. De certa forma, era um consolo. Não era pra um vampiro estar tão serelepe depois de dezessete meses sem sangue, e era bom ver que esse último suspiro de energia não durava para sempre.
Em algum ponto Daisuke fechou os olhos e perdeu quinze minutos de filme. Salado reparou, e pausou o filme, incerto se deveria chamar o vampiro. Não foi necessário.
— Não precisava parar.
— Você estava dormindo.
Daisuke deu de ombros.
— Da próxima vez você me conta o final e… — ele pareceu perder o fio da meada, grogue de sono — Eu não sei se vou lembrar disso, mas por favor, Salado, da próxima vez que eu acordar me lembra de tomar um banho.
Dessa vez ele ficara acordado por duas horas e cinquenta e três minutos.
Nos vemos no capítulo da semana que vem, no qual Haruka busca informações.
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