Técnicas Sanguíneas — Interlúdio IV

8 meses

Tempo estimado de leitura: 15 minutos

Esse mês tivemos a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, e eu fui. Foi minha primeira vez viajando para uma Bienal fora de SP, e definitivamente é uma aventura. Saí de lá exausta, mas bem feliz. Enquanto estou programando esse e-mail, ainda estou no estado de exaustão, então em vez de contar sobre a Bienal e manter vocês longe do seu capítulo de Técnicas Sanguíneas, vou pular para a parte que vocês realmente querem ler kkk

Mas quando acabar o interlúdio prometo atualizações decentes e tudo mais. Afinal, depois de hoje, só falta um capítulo 👀

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

IV

– 8 meses –

Quando Kim era adolescente, mestre Akihito havia tirado sua família da pobreza. Empregara sua mãe na mansão, e seu pai em um dos vários negócios satélite possuídos pelo vampiro. Dera uma pensão à viúva de seu irmão mais velho, e então havia ele próprio. Havia recebido uma educação melhor do que a de seus pares, mas nunca encontrara uma carreira que lhe agradasse. Manifestou o desejo de se tornar um vampiro.

Apesar de toda a gratidão a Akihito, seus pais se preocuparam. Uma coisa era trabalhar para um monstro gentil que tirara sua família da fome, e outra era ser transformado. Sua cunhada o apoiara, e seus sobrinhos, já pré-adolescentes, pareceram animados com a perspectiva. No começo eles o olhavam como um herói, da mesma forma que ele olhava para Akihito e seus galantes segunda-classes quando tinha a idade deles, e Kim achou que estavam criando uma bonita tradição de família. Estava enganado. Ao se tornarem adultos, eles já haviam se acostumado com os vampiros e com o fato de que seu tio era um deles. Não ficavam acordados até tarde para vê-lo, e quando atingiram a idade que ele tinha ao ser transformado, eram perfeitos estranhos.

— Você parece chateado, Kim.

Mestre Akihito! Perdão, eu me descuidei. — Kim fora pego no meio de um devaneio enquanto deveria estar de guarda. Se sentiu envergonhado. Sabia que era uma honra ter sido transformado pessoalmente pelo mestre, em vez de por um dos outros segunda-classe.

— Tenho certeza que você vai se concentrar melhor depois que desafogar o peito das suas angústias. Me acompanhe.

Mestre Akihito o havia chamado para seu escritório, e perguntado se Kim bebia quando era humano. Perguntou quais eram as bebidas boas, e quando Kim se decidiu, Akihito tirou uma garrafa da bebida mencionada de dentro de um cesto.

— Isso não vai mais embebedá-lo, mas eu espero que o gosto lhe traga boas lembranças.

Beberam juntos, e o mestre o persuadira a contar sobre seus problemas familiares, se é que podiam ser chamados assim.

— Você quer ouvir algo engraçado, Kim? Quatrocentos anos atrás, quando eu era deste tamanhinho, — indicou a altura de seu peito com a mão — os servos humanos de meu pai olhavam para os filhos, crianças aparentemente da minha idade, e diziam que “os jovens de hoje em dia não respeitam os mais velhos”. E então eles cresceram e ficaram mais altos que eu, e começaram a me tratar como uma criança mais nova. Sempre com o devido respeito à minha posição, mas como se dois palmos de altura fizessem dez anos valerem mais para eles do que para mim. Foi quando eu comecei a usar a frase “os jovens de hoje em dia não respeitam os mais velhos”, e a cada geração essa frase nunca parou de ressoar com meus criados humanos. Agora você está pensando isso dos seus sobrinhos. Sabe o que isso significa?

Ele não soubera o que dizer. Naqueles primeiros anos, mal tinha coragem de falar na frente de Akihito ou mesmo dos segunda-classe de Hong Kong e do Japão.

— Significa que você está velho, Kim.

Os dois riram juntos da conclusão. Kim se lembrava da admiração que sentira por seu superior ter se dignado a ouvir seus problemas, e a graciosidade do mestre Akihito ao contar uma anedota para distraí-lo. Isso lhe dera confiança para começar a falar com os segunda-classe mais velhos, e eles não eram nem metade tão inacessíveis quanto havia imaginado em sua timidez. Eram invariavelmente unidos por sua admiração por Akihito, e ao longo de décadas eles lutaram por seu mestre: contra criminosos humanos, contra rivais vampiros e até contra outras forças sobrenaturais. Alguns dos segunda-classe sêniores morreram nessas batalhas, e de repente Kim não era mais um novato: era parte do alto escalão.

Braço direito do mestre Akihito.

Não era presunção: Akihito dissera isso, com exatamente essas palavras, numa noite em que ficara melancólico e chamara Kim para beber com ele sob o luar.

“Por que o senhor bebe?” havia pensado em perguntar, mas a pergunta real era outra: “por que eu?” Por que não Han, que estava com Akihito desde Hong Kong e além de poderoso devia conhecer a história e o modus operandi do mestre? Por que não Kamino, nascido em uma família que servia a família de Akihito há séculos? Por que não Li Iseok, que crescera num ambiente mais aristocrático e compartilhava vários dos gostos finos do mestre?

Mas o fato era que Kim era o favorito, com responsabilidades proporcionais, e os outros segunda-classes o tratavam com respeito. Yukio fora transformado há no máximo dez anos, e ele olhava para Kim com aquele mesmo olhar incrédulo de estar no mesmo círculo desses vampiros poderosos e incríveis que ele tinha para com Han e os que haviam partido.

E então Haruka saíra do quarto.

Ele ficara feliz, todos os segunda-classe e os terceira-classe mais benquistos ficaram! Sabiam o quanto o mestre amava a irmã, já o haviam visto abandonar reuniões importantes porque a senhorita havia se levantado — ela passava dias seguidos jogada na cama — e chamara por ele. A maioria deles não tinha idade para se lembrar de Hong Kong e entender o que a havia colocado em tamanha depressão, mas desejavam a felicidade dela, e os últimos vinte anos haviam sido de pequenas vitórias, com a senhorita Haruka pedindo que as criadas a penteassem e fizessem sua maquiagem com mais frequência, e pedindo ao irmão que tomasse chá com ela. Uma vez ouviram música vindo do quarto dela! Ela colocara o velho gramofone para trabalhar! E a fila de vampiros e humanos parados a uma distância respeitosa da porta, impressionados com o fato, era cômica. E acalentadora: quanto carinho pela jovem princesa.

Quando Akihito lhe deu a notícia, o mestre parecia melancólico, mas decidido.

— Kim, eu já lhe contei sobre o problema de minha irmã?

— Não, senhor.

Então Akihito serviu uma dose generosa de uísque para si mesmo, e explicou. Contou sobre a falta de sangue primário de Haruka, sua técnica sanguínea e a traição dos vampiros de Hong Kong. Após uma pausa, Akihito tornou a se servir e, como se só então lhe ocorresse, ofereceu um copo para o segunda-classe. Kim aceitara, e se lembrava de pensar que, para alguém que nunca fora afetado por álcool, seu mestre imitava muito bem os trejeitos de quem “bebia para esquecer”. A balançadinha do líquido no copo, a contemplação, o primeiro gole como quem se prepara para um impacto.

Akihito continuou:

— Ela não sente confiança para criar segunda-classes novamente, e eu prefiro assim. Minha irmã precisa de servos que sejam de absoluta confiança. — uma pausa de um microssegundo — E por isso eu dei a ela você. Você vai servir minha irmã como serviria a mim. Vai acompanhá-la aonde quer que ela deseje ir, e garantir que ela estará em perfeita segurança.

O sangue primário bateu com tanta força que Kim parou de respirar. Quando exercia autoridade assim, Akihito parecia formidável, um herói ou general da antiguidade, prestes a derrubar um império. Tudo o que o segunda-classe pôde fazer foi assentir.

— E tem mais uma coisa. — Essa era a parte melancólica, a expressão de Akihito denunciava. — Haruka e eu não dividimos brinquedos. Eu ofereci emprestar qualquer um dos segunda-classes, mas ela não quer um subordinado emprestado. Ela quer alguém que pertença a ela. E por isso você beberá o sangue dela. Você entende quais as consequências disso, Kim?

— Sim, senhor.

Exceto que Kim não entendia.

Nada o preparara para a náusea que tentar beber qualquer outro sangue causava. Para estar disponível para Haruka ele acabava se isolando dos outros segunda-classes, e Akihito não podia ficar sem um braço direito, então assistira à rápida ascensão de Yukio como novo favorito. Seu único consolo era a satisfação de estar servindo o mestre em outra frente. Sempre que voltava das compras com Haruka e a senhorita parecia animada, ele sabia que o mestre ficaria feliz, e isso bastava.

Quando Haruka parara de apreciar seus serviços, Kim conheceu fome como não passara nem quando era vivo. Só a oportunidade de realizar tarefas para seu mestre o manteve são. Achava que ao terminar sua penitência tudo voltaria ao normal, mas a senhorita Haruka havia colocado pra dentro de casa um caçador de vampiros. Por sorte isso não havia durado. Por sorte ela o tocara pra fora da mansão sem sequer ter tempo de pegar uma muda de roupas. E no entanto…

“No entanto eu ainda estou de castigo.”

Achava que, sem Daisuke, Haruka voltaria a se apoiar nele para tarefas. Estava enganado. A senhorita descobrira o fantástico mundo das compras on-line, e começara a dar tarefas para Yu Jun sob a desculpa de serem “coisas mais convenientes de se fazer de dia”. Apesar disso, Kim não tinha permissão para deixar o lado dela por mais do que dois ou três minutos de cada vez. Ela voltara a ficar enfurnada no quarto, aparentemente apenas para enlouquecê-lo. O recorde fora 67 dias, e depois de uma caçada na zona neutra durante a qual ela o ordenara a ficar no carro, estavam há 42 dias em casa de novo.

O mestre Akihito não lhe dera mais nenhuma tarefa, e Kim se preocupava se estava deixando de fazer sua parte para a manutenção dos negócios do grupo, ou se suas tarefas haviam sido passadas para Yukio. Se o mestre tinha seu novo número de telefone, não havia considerado conveniente se comunicar.

Por bem ou por mal, tudo aquilo havia de passar. Han uma vez lhe dissera que nenhum chilique de imortais durava mais do que algumas décadas. Cedo ou tarde Haruka voltaria atrás.

Por isso Kim esperava.

O próximo capítulo de Técnicas Sanguíneas chegará ao seu e-mail dia 28/07.

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