Técnicas Sanguíneas — Interlúdio III

44 dias.

Tempo estimado de leitura: 10 minutos

Se vocês querem saber como anda a minha vida, bem… o nível de caos foi tal que eu perdi o envio da newsletter na segunda-feira e acabei enviando só hoje, né?

Durante o mês de maio eu estou fazendo um trabalho para o doutorado, tipo trabalho de escola mesmo, só que “escola” nesse caso é o curso de Termo-fluido-dinâmica de reatores nucleares. Eu achei que ia levar duas semanas, mas estou nisso o mês inteiro, e ainda não acabei. Para focar nos estudos coloquei várias coisas de lado, a escrita foi uma delas, e confesso que não escrever já está me deixando irritadiça. Despejar histórias no papel é parte da manutenção da minha saúde mental.

Um update mais feliz: esterei na Bienal do Livro do Rio de Janeiro dias 20 e 21 de junho! Chego no Rio um pouco antes, mas quero deixar um dia reservado pra ver gente (e me recuperar da viagem de ônibus).

Fora isso… o que vocês acharam do capítulo anterior? Eu não tenho muitas oportunidades de falar sobre o Wilson, ou sobre como o nome e o passado secreto dele contém referências a Edgar Allan Poe, então espero que vocês tenham gostado do que é provavelmente meu bebê vampiro mais dodói da cabeça.

Agora, sem mais delongas, o capítulo de hoje.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Apesar de não haverem descrições gráficas, neste capítulo especificamente uma personagem reflete sobre o abuso que tem sofrido e ideações suicidas decorrentes desse fato.

III

- 44 dias -

A pistola estava em cima do armário da cozinha.

Nenhum dos segunda-classe era alto o suficiente para enxergar em cima do armário sem subir na mesa, e ninguém era festivo ou aleatório o suficiente para fazê-lo.

Ela passara dias esperando que alguém sentisse cheiro do aço, da pólvora, ou até da maldição imbuída nas balas. Ninguém havia reparado, e Alana não havia feito perguntas específicas sobre a briga com os subordinados de Wilson, então não se sentira compelida a entregar a arma ou sequer revelar sua existência.

Queria tanto atirar em Alana.

Quando Alana a proibia de sair para caçar e ordenava que bebesse seu sangue, Nathalie se consolava pensando na pistola. Quando Alana a chamava para o quarto e a despia, Nathalie se consolava pensando na pistola. Quando Alana fazia com que a acariciasse e retribuía com carícias que Nathalie não desejava, Nathalie se consolava pensando na pistola.

A arma carregada com munição amaldiçoada do Departamento de Contenção de Eventos Paranormais era como um talismã de boa sorte, um passaporte para “acabar com isso na hora que ela quisesse”.

Então porque ainda não havia atirado?

Nathalie criava justificativas.

Primeiro, havia o sangue primário. Alana não precisava ordenar que seus segunda-classe não a ferissem, o sangue primário tornava isso automaticamente difícil. Teria que lutar contra a ligação sanguínea e isso a faria hesitar e a tornaria lenta e daria a Alana tempo o suficiente para… o raciocínio terminava com lembranças de sua criadora saindo do quarto apenas de calcinha, carregando a cabeça de Pietro pelos cabelos. Designara dois dos segunda-classe para se livrar do corpo, e Nathalie para limpar o quarto. Quando estava na polícia, Nathalie nunca pesquisara “como tirar mancha de sangue do colchão”, então enquanto Alana tomava um longo, longo banho, Nathalie havia passado todos os produtos de limpeza que pareciam plausíveis, esfregado e, quando a mancha persistira, virado o colchão. Toda vez que Alana a levava para o quarto ela pensava naquela mancha. Se Alana a matasse, os dois lados ficariam sujos, e ela precisaria comprar um novo.

Em segundo lugar, não sabia como matar Alana afetaria os outros. Não havia camaradagem entre os quatro segunda-classe de Alana. nenhum deles morria de amores por sua criadora, mas os outros três agiam como se Nathalie fosse ao mesmo tempo um bode expiatório e um vírus. Enquanto Alana estivesse entretida com ela, não os submeteria à mesma indignidade. Se interagissem demais com ela, talvez Alana os notasse. Como saber se eles eram o tipo de vampiro que ia viver mais ou menos sem tumulto, evitando matar, evitando brigas, ficando na sua… ou o tipo que sequestrava três mulheres e mantinha em cárcere privado para sempre ter um lanchinho à mão? O caso das “trigêmeas” de Constantino fora barra pesada.

“Mas nós demos conta.” Nathalie se pegou sorrindo. Duas duplas haviam sido destacadas para o caso: ela e Moxley, Daisuke e Charlotte. Mesmo sendo humanos, eles haviam sido capaz de vencer a força e velocidade vampíricas dos terceira-classe de Constantino! O sorriso murchou em seus lábios. Provavelmente era isso que havia deixado os caçadores arrogantes. Não o caso das trigêmeas especificamente, mas o fato de que podiam enfrentar os terceira-classe da cidade quase de um para um. Só que a maioria dos terceira-classe da cidade não eram treinados… e os de Akihito eram. Charlotte não participara da operação, e fora a única de seu grupinho que sobrevivera como humana. Pelo que Daisuke havia contado, Moxley parecia ter sido transformado por Weiss ou alguém de sua gangue. Ela, Nando e Pietro ficaram com Alana. Daisuke com Haruka. Os caçadores falavam de três outros policiais cujos corpos não haviam sido encontrados. Deviam ter sido transformado por outros vampiros, talvez alguém na gangue de Agonglô.

“Eles nos dividiram como um prêmio.”

Foi um momento de clareza como não vivenciava há meses. Eles podiam ter só matado os caçadores. Não estavam exatamente com escassez de segunda e terceira-classes. Mas queriam a demonstração de poder. O que estava acontecendo com ela também era uma demonstração de poder. Como era mesmo a citação? “Tudo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder.”

Mas suspeitava que Alana fosse doida também. Não completamente, mas… vampiros não podiam se embebedar. Pelo menos, desde que Daisuke lhe mostrara que podiam beber coisas que não fossem sangue, nada que experimentara fora capaz de embriagá-la. E como queria beber até não conseguir falar coisa com coisa. Alcoolismo era um distúrbio. Às vezes Alana a lembrava de um alcoólatra que saía para beber, e então chegava em casa e batia na esposa.

O que a levava à terceira coisa.

Nathalie não se considerava “mulher de malandro” que tolerava maus tratos por acreditar que “no fundo ele me ama” ou “ele precisa da minha ajuda”. Se não fosse o comando do sangue primário fazendo-a voltar para o apartamento de Alana toda noite, ela sabia que teria ido embora. Para onde, fazer o que, isso ela não sabia. Mas já que ela estava presa à outra vampira por todo o futuro vislumbrável… ela queria entender. Como uma pessoa que fora humana e tivera uma transformação traumática — ainda que espontânea, se é que uma morte pelas mãos de outro vampiro contava como espontânea — podia infligir a mesma coisa aos outros? Não esperava que uma pessoa nas mesmas circunstâncias se tornasse um vampiro justiceiro libertando segunda-classes relutantes dos grilhões do sangue primário dos puro-sangues… mas ela podia pelo menos… só transformar pessoas que houvessem consentido?

Não tinha ideia do que se passava na mente de Alana, e tinha medo de descobrir. Ou melhor, tinha medo do desejo de descobrir. Tinha medo de ter empatia.

“Onde acaba a empatia e começa a síndrome de Estocolmo?”

Esse era um ótimo assunto para pesquisar, passar horas dos alvoreceres insones lendo no celular para passar o tédio.

Também era um bom assunto para conversar com Daisuke. Será que ele também se pegava desejando entender Haruka? Sem sangue primário, Daisuke podia fugir, mas com a técnica sanguínea de Haruka, ele sabia que não iria durar longe dela. Nathalie era o contrário. Se ao menos pudesse se afastar de Alana sem levantar um alarme ao lutar contra o sangue primário… poderia sobreviver em qualquer lugar. Quão longe precisaria ir para que Alana não conseguisse convocá-la com um pensamento?

Nathalie:

Ei, Dai. Aprontando muito esses dias?

Enviou a mensagem. Sabia que era improvável receber uma resposta antes do pôr do sol. Haruka não o mandava sair de dia com tanta frequência assim.

Não esperava pelo silêncio.

Na primeira noite ela ficou esperando pela resposta dele, mas racionalizou que ele podia estar ocupado levando Haruka para a ópera ou outra dessas coisas que ele fazia.

Na segunda noite, começou a ficar chateada.

Na terceira, se preocupou.

Nathalie:

Daisuke, você está bem?

Essa mensagem não obteve resposta, mas o mais estranho é que ela fora visualizada.

“Desde quando ele visualiza e não responde?” Mais do que isso: ele poderia desativar o recurso mostrando que a mensagem fora lida, ou até bloquear Nathalie se fosse pessoal. Na improbabilidade do celular ser furtado, um assaltante teria desligado o aparelho, resetado e vendido. Ninguém estaria lendo suas mensagens. Mas um criminoso comum não conseguiria afanar o celular de um vampiro.

“Um criminoso incomum, então.”

Nathalie:

Com licença, mas… é a Haruka que está com o celular dele? Se você tirou o celular dele por algum motivo, eu entendo. Só queria saber se ele está bem. Prometo não incomodar mais.

Encarecidamente,

Nathalie Escobar

Segunda-classe da Alana

Escreveu a mensagem como se enviasse um e-mail, porque Haruka era uma pessoa antiquada, e pessoas antiquadas usavam e-mail. Dessa vez, enviou a mensagem e guardou o celular, ciente de que não poderia fazer mais nada. Para sua surpresa, recebeu uma resposta 5 minutos depois.

Daisuke:

Você é amiga do Daisuke?

A senhorita Haruka o expulsou de casa, e ele deixou o celular comigo.

Meu nome é Hana.

O próximo capítulo de Técnicas Sanguíneas chegará no seu e-mail dia 30/06.

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