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Técnicas Sanguíneas — Interlúdio II
Última chance de responder a pesquisa sobre frequência de envios.
Tempo estimado de leitura: 10 minutos
Rudyard Kipling foi um escritor britânico que nasceu na Índia, autor de “O livro da selva”, vocês sabem… Mowgli. Era dele que a Hana estava falando no capítulo passado, caso vocês tenham se perguntado.
Eu vira e mexe penso nas colônias britânicas, e como os colonizadores conseguiam manter tanta distância do povo daquelas terras que você tem “um escritor britânico que nasceu na Índia” em vez de “um escritor indiano”. Para um exemplo mais moderno, Tolkien foi um escritor britânico que nasceu na África do Sul. Imagina o disparate que seria chamar Tolkien de “escritor sul-africano”. Sei lá, na minha cabeça o Brasil não é assim. Em 1500-1600, quando tudo era muito recente, a gente não teve nenhum escritor/poeta, mas quando chega 1800… eles já são poetas brasileiros. Às vezes eles estudaram na europa, mas eles são poetas brasileiros. Ou talvez só façam 16 anos desde a minha última aula de literatura e eu só não saiba mais do que estou falando.
Enfim, sigo fazendo terapia, sigo tocando o Verifique Antes de Ler, e sigo escrevendo a terceira temporada de Técnicas Sanguíneas, pra quando terminar de publicar esse interlúdio eu já poder anunciar uma data de publicação, em vez de ficar enrolando vocês indefinidamente.
Pela última vez vou colocar o link da minha pesquisa sobre frequência ideal de envios, quem não respondeu, não esqueça:
Fiquem agora com mais um interlúdio de Técnicas Sanguíneas.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Apesar de não haverem descrições gráficas, alguns personagens podem relatar casos de abuso sexual e ideações suicidas.
II
– 43 dias –
Aquela menina Alana estava sendo barulhenta de novo.
Wilson queria matá-la. Exceto que era culpa dele por se meter onde não devia. Ela era exatamente como ele. Talvez mais psicopata. Talvez não. Talvez só um tipo diferente de psicopata. Passar dez anos se fazendo de sósia de um cara que tinha o mesmo nome não era normal. Queria dizer que estupro era pior, mas ele também não era muito bom com esse negócio de consentimento. Queria dizer que estava com segunda-classes demais, mas era o contrário. Se matasse mais deles, não teria segunda-classes o suficiente para controlar os terceira-classes, e então o quê?
Caos. Eles testariam as fronteiras, causariam brigas, haveria retaliação, ele perderia territórios. Mas se não podia matar os segunda-classes, podia matar Alana. Exceto que ele não queria. Ela não tinha ninguém para ensiná-la a ser vampira. Perto dela, ele havia tido sorte. Pensou na Torre.
“Ah.”
É claro. Pensar na Torre era sempre a resposta. A maneira não homicida mais eficaz de colocar seus pensamentos sob controle. Ela raramente sonhava, e a profundidade do sono centenário tinha um efeito calmante. Wilson já havia pensado em fazer ioga, ver se a meditação o ajudaria, mas isso era mais rápido. As coisas nem estavam tão ruins assim. Entre o confronto com Akihito alguns meses antes e o ataque surpresa da menina de Alana… sentiu seus pensamentos derraparem, uma sensação misturada de dor e prazer — arranhões profundos nas costas? — querendo aumentar o volume de Alana, mas esse definitivamente não era o momento. Entre o confronto com Akihito e aquele ataque totalmente sem sentido, havia perdido nove subordinados. Quer dizer, nove dos que contavam. Talvez uns vinte dos outros. Não tinha certeza. Franco saberia, mas aumentar o volume de Franco não adiantaria, ele estava ocupado tentando aprender a contar cartas. Wilson achava que se em quinze anos sem ter absolutamente nenhum outro hobby a pessoa ainda não havia aprendido, então ela não aprenderia nem em um século. Podia mandar uma mensagem pra ele.
Wilson suspirou ao perceber que estava se distraindo de novo.
“Então, Alana se diverte atormentando os segunda-classe dela. Certo. Não dá pra dizer que os outros não façam isso.” Era uma demonstração de poder. Mesmo os segunda-classe que haviam aceitado a transformação precisavam entender que isso não era um emprego do qual poderiam pedir demissão caso tivessem um desentendimento com o chefe. As vidas deles pertenciam ao seu criador.
Nesse sentido, ser um vampiro de primeira classe era muito solitário. Toda a memória de uma vida humana, acompanhada da certeza absoluta de que essa vida não era sua, porque você não era humano. De novo, Wilson pensou que tinha tido sorte. Não tivera que lidar com as memórias da sua vida humana por meses. E os ecos díspares dos pensamentos dela ainda eram uma orientação melhor do que tentar descobrir o que estava acontecendo na base da tentativa e erro. Alana por exemplo havia voltado pra seu apartamento sem saber que era uma vampira, duplamente faminta pela sua transformação espontânea e por se defender de Akihito. Acabara matando a amiga com quem dividia o apartamento. Alana pensava na amiga morta toda vez que transava, e Wilson não sabia se é porque elas eram um casal, se Alana tinha um crush não correspondido, ou apenas um fetiche. Tentava ficar longe da mente de Alana nessas horas, e nas outras ela evitava ativamente pensar no assunto.
Wilson se acomodou na cama, folheando uma edição muito antiga dos contos de Edgar Allan Poe. A essa altura não precisava relê-los, só passava as pontas dos dedos pelo livro pra tentar sair um pouco da própria mente. Gostava de sentir a textura das páginas e tentar sentir a passagem do tempo. Cuidava bem do seu livro, mas seu apartamento não era exatamente uma sala com atmosfera controlada no porão do vaticano. Quanto tempo o seu livro duraria? Quem duraria mais, o exemplar de 1840 e qualquer coisa, ou ele próprio? E mais do que o livro físico, por quanto tempo as histórias continuariam a ser lidas e contadas? Wilson às vezes se perguntava se viveria o suficiente para chegar numa época da humanidade em que alguém diria “Edgar Allan quem?”, ou se algum escritor ou poeta era grande o suficiente para isso nunca acontecer.
Estava amanhecendo. Seus segunda-classe e os terceira-classe que havia marcado caíram no sono um a um. Logo Alana também estava dormindo, e Wilson lutou contra a sonolência para aproveitar a quietude. Abençoada quietude. Sempre fora um humano mais “noturno”, e considerava uma certa ironia dramática ter se tornado um vampiro que gostava de esticar uma ou duas horas depois do nascer do sol.
Com sua mente toda para si mesmo — exceto pelos sonhos ocasionais dela, pois todos os outros dormiam profundamente demais para sonhar — Wilson podia se dedicar a problemas que requeriam mais da sua atenção.
“Ah, sim. O ataque.”
A garota de Alana, Nathalie. Ela era um dos policiais transformados após a mega operação na qual os caçadores de vampiros tentaram emboscar Akihito, mas em vez disso foram emboscados.
“Aquele dia foi loko,” seus subordinados diriam.
Enfim. Não fora uma ordem de Alana. Ele saberia. Fora que ela não tinha motivos. Então a segunda-classe estava agindo sozinha. Ou melhor, não sozinha. Ela estava acompanhada de outro vampiro, que em seus momentos finais Rian julgara ser japonês. Wilson quase não tivera tempo para vê-lo através da mente do terceira-classe antes que ela se apagasse, mas podia jurar que era o neto de Constantino que o visitara e vomitara um litro de sangue em seu carpete.
Não era como se Akihito tivesse monopólio dos vampiros aparentemente japoneses, então não estranhara quando o jovem vampiro se apresentara como descendente de Constantino. Alana tinha contato com a irmã de Akihito, e livre passagem pelo território, então também não era absurdo que os segunda-classe de Alana e de Akihito se mancomunassem para uma briga de rua. O que era absurdo era imaginar um subordinado de Akihito trabalhando para Constantino, ou a família de Constantino andando com Alana. O velho decidira que ela era problema, e desencorajava os filhos de entabular amizade. Aliás… desencorajava os filhos de entabular amizade com qualquer um, aparentemente. Mesmo com pares de olhos extras, nunca havia visto membros da família de Constantino se misturando com as outras gangues nos espaços considerados neutros.
Wilson parou. Estava se distraindo. Era tarde, e o corpo vampiro implorava pelo torpor para fugir do sol que se erguia lá fora.
“Talvez não seja o mesmo vampiro.”
Mas era, não era? Ele não era um grande fisionomista, mas o suposto neto de Constantino deixara uma impressão profunda, e um bom tapete completamente inutilizável.
“Se ele for um dos contatos da Alana, eu com certeza vou ouvir falar dele de novo.”
E então Wilson parou de tentar entender, e se rendeu ao sono.
Eu espero que vocês tenham gostado do POV do Wilson, ele não é um personagem que aparece muito, mas eu gosto desse doidinho. Vocês podem comentar respondendo esse e-mail, ou quem sabe fazer um #TecnicasSanguineas na rede social de sua escolha. Nos vemos em maio ;)
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