Técnicas Sanguíneas - Capítulo 9

Semana passada ouvimos falar de um conjunto de pessoas interessantes: Salado do laboratório, a gangue do Wilson, Yukio e sua irmãzinha de 90 anos...

Hoje... hoje o circo vai pegar fogo.

Errata: na edição anterior deixei de colocar o link para o texto da Júlia comentando sobre Técnicas Sanguíneas. Confiram a newsletter dela, Escrito à Meia-noite.

Banner de fundo vermelho escuro, com vinhas e flores douradas, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos, meu nome em baixo na cor branca (A. C. Dantas)

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica.

Capítulo 9

 — Daisuke, você tem carteira de motorista?

 Ele havia ido até Haruka em busca de sangue, como sempre, mas dessa vez ela o segurou com uma pergunta.  

 — Sim. — “Mas eu me pergunto se ela ainda é válida.” Afinal, fazia pouco mais de um ano desde que fora declarado morto.

 — Então me leve ao shopping.

 Era a primeira ordem oficial de Haruka, e Daisuke tinha muita vontade de dizer “Não tô a fim”, mas ainda sentia um resquício do sangue dela na boca, e estava consciente do fato de que nunca conseguiria beber uma gota a mais do que ela permitisse. Nos dias mais sedentos, quando ele não sentia vontade de soltar o braço dela, ela se desvencilhava sem esforço algum. Haruka era muito mais forte que ele. Então em vez disso perguntou, tentando esconder o desânimo:

 — Hoje à noite?

 — A não ser que você queira me levar durante o dia.

 Pela expressão dela era impossível dizer se estava sendo cínica ou falando sério. Daisuke sabia que vampiros puro-sangue podiam andar sob o sol. Será que suas crias mais fortes compartilhavam dessa vantagem? Ele não estava interessado em descobrir. Mesmo que não queimasse, Daisuke preferia evitar o cheiro carbonizado que permeava tudo durante o dia.

 Haruka tinha um carro destinado a ela, um sedã preto elegante, porém discreto. Falando em “discreto”… para seu passeio, a vampira usava um vestido de festa preto, salto alto e maquiagem, o cabelo preso em um coque justo. Assim como seu kimono vermelho, parecia um visual escolhido para passar uma mensagem. Lembrou-se da aparência de Haruka quando ela cruzara com ele e Charlotte no shopping. Naquele dia, Daisuke pensou, ela estava disfarçada. Tirara uma fotografia da dupla sem que eles percebessem, e então permitira que eles a vissem, mostrando as presinhas num sorriso provocador. Era a zona neutra, então não podiam detê-la simplesmente por estar lá.

 Eu só vim para saber o que você quer de mim. Sabe… por que você me transformou em um vampiro e tudo o mais?

 Eu ainda não decidi se você vai servir para o que eu quero. Mas nós vamos ter muito tempo pra isso.

 E tudo indicava que ela o havia escolhido antes daquele encontro. Quando? Onde? Como? Por quê? Ele dirigiu pela cidade em completo silêncio, levando-a para onde ela queria.

 ***

 Os passeios de Haruka eram espaçados entre si, e através deles Daisuke estava descobrindo todo um mundo novo de lojas chiques e teatros — ocasionalmente um museu ou galeria de arte com horários noturnos.

 — Eu ouvi dos subordinados do meu irmão que você tem ido à academia. — Haruka comentou.

 — É bom fazer exercício.

 Tirando instruções sobre o trajeto, era raro que ela dissesse qualquer coisa. Um diálogo desses podia ser seguido por horas e horas de silêncio.

 — Você se dá bem com eles?

 Mas algumas noites eram diferentes.

 — Quê?

 — A gangue do meu irmão. Você se dá bem com eles?

 — A gente se mantém fora do caminho um do outro.

 No fim, Haruka queria que ele se desse bem com outros vampiros? Nunca ficava claro pela maneira que ela conduzia as perguntas. Percebeu que ele não sabia o que a garota vampira estava pensando — não apenas quando ela o transformara, mas sobre todo o resto. Por que ela vivia com o irmão? Ele nunca havia visto dois puro-sangues dividindo território. Por que Akihito tinha mais de trinta pessoas sob seu comando, enquanto ela tinha… bem, ele?  

 — Daisuke, tem algo que você queira me dizer?

 — Não.

 Haruka pareceu não gostar de ter sua tentativa de conversa cortada, mas da mesma forma que Daisuke não pretendia se aproximar da gangue de Akihito, mantinha uma distância segura da sua criadora.

 ***

 Com as saídas imprevisíveis de Haruka, Daisuke achava mais difícil marcar encontros com os caçadores. Mais de uma vez planejara ir até o Stravo’s, apenas para ter seus serviços requisitados por Haruka. Sentia que furar com eles era como dar dois passos pra trás no relacionamento de confiança que vinham construindo. Ao aparecer depois de uma ausência, sentia que a conversa ficava duas vezes mais focada nas atividades de Akihito e sua gangue.

 — Às vezes os segunda e terceira-classe do Weiss e do Agonglô vêm até a mansão. — Daisuke estava contando aos caçadores de vampiros. Agora, além de Charlotte, de vez em quando outra pessoa vinha junto. Geralmente o parceiro dela, Rivers, e às vezes o chefe, mas também uma ou duas pessoas de quem Daisuke costumava ser próximo.

 — Como você sabe a diferença entre um segunda-classe e um terceira-classe?

 “E eu aqui querendo discutir futebol e novela…” Daisuke deu um suspiro audível.

 — Bom, eu não sei se é assim em todo lugar, mas na casa do Akihito os terceira aclasse sempre mostram deferência para os segunda-classe. E os segunda-classe passam uma sensação de força. Quase uma aura. Mas nem sempre.

 — E o que eles fazem quando vão lá?

 — Se eles vieram cumprindo ordens dos respectivos chefes, eles vão direto falar com o Akihito e raramente ficam, então é difícil ter certeza do que eles falaram. Mas às vezes eles vem só pra curtir, e daí é mais fofoca mesmo.

 — Fofoca?

 — Fofoca. — Daisuke assentiu, e deu exemplos. — “O lugar onde o Miura mora é um buraco, os terceiros dele odeiam”. “Eustass fez outro quarta-classe, outra menina. O criador dele devia impor alguns limites”. “Você percebeu que antes das 11 aquele café só tem casais hétero, mas depois das 11 são só casais gays?”. Se eu ficar ouvindo bastante eu sempre encontro alguma coisa útil, tipo a localização de um esconderijo ou algo assim, mas em geral é só fofoca.

 Falando em fofoca… da próxima vez que ele e Charlotte estivessem sozinhos, perguntaria a ela sobre sua vida pessoal. Achava que já era seguro tentar de novo.

 “A próxima vez” não correu muito bem.

 ***

 — E aí, Dai. Como você está?

 — Nada mal. Sabe como Akihito tem uma aliança com Weiss e Agonglô? Aparentemente isso dá aos membros da gangue dele o direito de ir e vir entre os territórios. Caçar não. Mas enfim, tem um teatro de ópera na área do Agonglô! Na abertura da temporada eu levei a Haruka numa limosine.

 — … mas não caçar… — Charlotte terminou de anotar. — Você sabe como eles reforçam esse acordo?

 — Eu não faço ideia. — ele sorriu, apoiou o rosto nas mãos, e piscou devagar.

 “Me pergunte como foi a peça. Me pergunte como foi a peça. Me pergunte como foi a peça…” não tinha ideia de como Influência funcionava. Tinha sentido um exemplo no dia que Alana o atacara, mas não sabia o que fazer para ter o mesmo efeito.

 — Que cara é essa? — a policial riu.

 — Nada não.

 — E quanto tempo dura uma ópera?

 — Essa, umas quatro horas.

 — E você ficou assistindo?

 — Nah, eu fico esperando no carro. Eu descobri que o Akihito assina uns quatro jornais diferentes, eu roubo eles da pilha de lixo reciclável e fico me divertindo com as palavras cruzadas.

 — Que tipo de jornal ele lê?

 Tentar manter o ânimo durante aquela conversa era como manter acesa uma vela durante um vendaval. Ele suspirou.

 — Um em japonês que eu não sei onde ele consegue, e três de economia.

 Charlotte olhou pra ele, estreitando os olhos. Perguntou, com um pouco mais de seriedade:

 — O que foi?

 — Você pensou na minha sugestão? De tirar uma noite pra ir em algum lugar e fazer alguma coisa? Graças à Haruka agora eu sei todas as galerias de arte que ficam abertas até o meio da noite. Tem vários lugares legais na zona neutra.

 Ele viu o instante em que os olhos de Charlotte brilharam com reconhecimento. Ela tinha acabado de lembrar daquela conversa. Tinha claramente esquecido do assunto até o momento.

 — Verdade. Eu devia falar com o John.

 — Por que você não fala com ele agora? Ligue pra ele.

 — É, o esquadrão inteiro já sabe que a gente tem se encontrado, então não acho que você vai precisar de uma autorização especial nem nada… — Daisuke começou, e então parou. Havia algo de errado.

 Charlotte falava com Rivers pelo telefone.

 — Você está aí fora? Vem aqui, o Daisuke teve uma ideia, e eu achei que você precisava estar incluído.

 — Claro. Já chego aí. — Daisuke ouviu a voz do caçador pelo telefone.

 — Ótimo. Agora será que você pode me entregar isso?

 Distraída, ela entregou o telefone para a pessoa que dividia a mesa com eles. Exceto que não era para ter ninguém dividindo a mesa com eles. Alarmado, Daisuke se concentrou, focando no rapaz japonês sentado na ponta da mesa. Daisuke quase não o reconhecia em roupas comuns: normalmente só via Akihito em intrincados kimonos cerimoniais ou ternos caríssimos.

 “O que você está fazendo aqui?!”

 A primeira reação de Daisuke teria sido gritar e exigir explicações, mas um calafrio lhe dizia que se fizesse movimentos bruscos, ou ele ou Charlotte estariam mortos muito em breve. Olhou para sua ex-parceira. Ela olhava fixamente pra porta, esperando John entrar no restaurante, mas sua expressão era um pouco sonhadora demais.

 Daisuke abriu a boca, mas Akihito lançou a ele um olhar significativo. Quando Rivers entrou no restaurante e se aproximou da mesa, Daisuke viu a expressão do policial ficar cada vez mais confusa.

 — Quem é você? — Ele perguntou a Akihito.

 — Eu sou Akihito. E você?

 — John Rivers… — ele soava incerto, e Daisuke supôs que era o treinamento fazendo efeito, tentando identificar e lutar contra a influência vampírica. Assustada, Charlotte se virou para o vampiro.

 — Há quanto tempo você está aqui?

 — Você é diferente do que eu esperava. — Rivers disse, soando um pouco mais assertivo.

 — As roupas fazem o homem. Roupas comuns me dão uma aparência comum. E eu odeio isso.

 Para Daisuke, a Influência era quase uma força tangível, e podia sentir Akihito invocando-a e usando-a contra os dois caçadores, passando por cima da resistência deles e engolindo-os inteiros. Eles ouviam o vampiro como se suas justificativas fizerem sentido, como se ele fosse uma pessoa qualquer com quem é possível dialogar. Eles não tinham mais a expressão sonhadora, mas o fato de que não faziam nenhum movimento em direção ao rádio ou às pistolas era indicativo de que não pensavam direito.

 — Por que você está aqui? — Rivers perguntou.

 Akihito ficou brincando com o telefone — o telefone de Charlotte, Daisuke se forçava a lembrar. Se não se concentrasse, a Influência de Akihito o arrastaria para aquela alegre confusão mental que afetava os caçadores nesse momento. Resistir a Alana não havia sido nem metade tão difícil.

 — Eu vim buscar o Daisuke. Minha irmã queria que ele a levasse de carro até o centro, mas as criadas não conseguiram encontrá-lo em lugar nenhum. Eu disse a ela pra levar um dos dos meus subordinados, mas ela fez questão. — Daisuke sabia que a história era dirigida a ele, e não aos caçadores de vampiros que observavam mesmerizados — Eu fiquei chocado de descobrir que ele andava saindo toda noite, e às vezes até passando o dia fora. Haruka especificamente ordenou que meus homens o deixassem em paz! Mas eu por acaso percebi o aumento de caçadores de vampiros patrulhando áreas que são de interesse para mim e meus associados, e achei que não podia ser coincidência. E minha irmã não tem o sangue primário, o que corrobora a minha tese. Eu saí por aí fazendo perguntas, encontrei o Daisuke, e aqui estou.

 Durante os poucos segundos em que ficaram se encarando, Daisuke pensou em mil coisas. Que ele ia morrer. Que Akihito e Haruka tinham o mesmo formato de rosto redondo. Que Charlotte ia morrer. Que Rivers ia morrer. Que o ciúmes que sentira de Rivers devia ter passado, pois não queria que ele morresse. Akihito, por sua vez, apenas mexia no celular de Charlotte.

 A porta da lanchonete se abriu, revelando Wendell e Moreira.

 — Ahn, pessoal? — os dois caçadores se aproximaram, parecendo confusos. — A Charlotte não mandou uma mensagem?

 — Sim. — Akihito respondeu no lugar dela. — Ela está com muito sono, e John não está muito melhor. Então estávamos nos perguntando se vocês podem ficar até a hora de dar uma carona pra eles.

 Seguindo a deixa, Charlotte deu um grande bocejo, e Rivers até tentou disfarçar, mas não fez um trabalho muito bom em esconder o próprio bocejo. Pra piorar as coisas, Charlotte apoiou a cabeça no ombro de Akihito como se fosse a coisa mais natural do mundo. Isso deu a Daisuke uma visão privilegiada do pescoço dela — que mesmo contendo apenas sangue inadequado para consumo, continuava parecendo desejável.

 “Agora não é hora pra isso… ” Daisuke sentia os sentidos vampiros ficando mais aguçados, procurando desesperado por uma saída. Era pra Wendell e Moreira serem os “reforços” , mas logo estavam cabeceando também, tentando inutilmente permanecer acordados.

 — Então, Daisuke Koyama, o que eu deveria fazer com você? — Akihito examinou uma mecha do cabelo loiro de Charlotte. — Um traidor normalmente seria executado, mas como você pertence à minha irmã, eu não posso simplesmente fazer isso. Se eu contar a ela que você a tem ignorado para vazar informações sobre os meus negócios para caçadores de vampiros, ela vai ficar tão irritada.

 Daisuke não sabia se Akihito estava sugerindo isso através da Influência ou apenas teatralidade, mas sentiu uma ameaça implícita: uma Haruka irritada poderia tornar a existência de Daisuke um inferno. Até agora, ela nunca havia sido condicional, mas ele sempre se perguntara qual seria o limite. Se começasse a pedir o sangue delas todos os dias, ela colocaria um limite? Se fosse pego traindo o irmão dela, ela o puniria deixando que morresse de fome?

 — Assim sendo, eu pensei em uma solução. Eu espero que esses sejam todos, ou pelo menos a maioria dos caçadores de vampiro com quem você andou se misturando? — Akihito apontou os policiais adormecidos. — Se eles forem eliminados, eu duvido muito que a polícia vá ter a boa vontade de permitir que outros oficiais se encontrem com você. Mesmo que você ainda tenha a disposição de vazar informações, você provavelmente seria recebido com uma bala amaldiçoada nas costas.

 Houve silêncio, como se Akihito realmente esperasse uma resposta. Ele continuava a acariciar Charlotte. Daisuke olhou para os ex-colegas e imaginou os corpos estatelados do chão, cobertos de sangue.

 — Por favor, não.

 — Ah, sim, a moça era uma amiga, certo? Talvez em vez disso eu devesse transformá-la?

 — NÃO! — Daisuke se pegou levantando de supetão, procurando no rosto de Akihito alguma pista de que o vampiro não faria isso, mas no fundo enxergando apenas o marido e o filho de Charlotte. Eles sofreriam muito se ela morresse, e ela sofreria mais ainda se tivesse que viver sem voltar a vê-los, correndo o risco de machucá-los.

 Mais rápido do que Daisuke podia reagir, Akihito ergueu a mão para ele. Daisuke se retraiu, esperando um golpe, mas o vampiro puro-sangue apenas segurou seu rosto. Akihito foi aumentando a pressão até que os ossos de Daisuke começaram a estalar, mas ele não parou.

 — Não fale com seus superiores nesse tom.

 A mandíbula de Daisuke estava em frangalhos, e assim que Akihito o soltou Daisuke precisou segurar o próprio rosto no lugar pra evitar que as coisas se afastassem demais dos lugares corretos. Sentia uma espécie de concentração de energia na área, a estranha magia vampira se movendo para curá-lo. O instinto lhe dizia que o dano causado era pequeno — poderia curar lesões muito piores, e muito mais rápido, se necessário. Ainda assim, sentia dor, e não conseguia se focar na cura, tanto pela novidade da situação quanto pela presença ameaçadora de Akihito.

 — Mas eu havia imaginado que essa solução encontraria resistência. Minha outra alternativa é deixar seus amigos caçadores aqui… e levar você para ser disciplinado pela minha irmã.

 Daisuke sentiu o coração afundar. A cura da sua mandíbula já o estava deixando sedento, e ele sentia a perspectiva da próxima refeição cada vez mais distante. Devagar, ele assentiu.

 Akihito se levantou, e ele fez o mesmo. O líder dos vampiros da zona sul colocou uma mão sobre o ombro dele, firme como uma prensa, e o conduziu para fora sem lhe dar a chance de olhar para trás, para os quatro policiais adormecidos na mesa do restaurante.  

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