Técnicas Sanguíneas — Capítulo 39

No qual Daisuke se reconecta com amigos.

Tempo estimado de leitura: 15 minutos

O capítulo 40 vai sair apenas no ano que vem, então saboreiem esse.

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Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 39

No qual Daisuke se reconecta com amigos.

Em mais uma das infinitas noites fazendo companhia a Haruka, Daisuke aproveitava para deletar as conversas de Hana do seu celular. Tentava respeitar a privacidade dela, mas não podia deixar de notar pequenas curiosidades. A maioria dos contatos eram grupos: “Apartamento dos meninos videogame”, “Trigêmeas”, “Tio Rick e primos”. Aparentemente a família de Constantino não conseguia por as mãos em celulares individuais. Ou talvez fosse proposital. Não havia como saber que regras arbitrárias que o patriarca impunha à família. O contato de Bárbara fora renomeado de “SPAM INTERNET FIBRA ÓTICA NÃO ATENDER” para simplesmente “Bárbara”. Daisuke o deixou assim. Supôs que, agora que Haruka era mais cautelosa com o irmão, as chances de Akihito ficar sabendo das ligações ocasionais dela eram mínimas.

Depois de algum debate interno — apesar de não muito — Daisuke abriu a conversa. Ficou aliviado de não encontrar nenhuma convocação alarmante como “meu pai quer vê-la” ou “tenho um trabalho pra você”. Bárbara pedia que Hana passasse muitos recados às trigêmeas, aparentemente o celular coletivo delas ficava em casa, e quando saíam era mais fácil usar Hana como intermediária. Também havia uma lista frequente o suficiente de pequenas tarefas: roupas a serem recolhidas na lavagem a seco, pacotes para serem entregues para os “primos”, turnos de guarda na fronteira com Wilson. Esse último era o mais preocupante, mas dificilmente indicava que Hana fora exposta a uma vida de violência. Wilson podia ser estranho, mas fazia décadas que ele e Constantino não tinham uma briga de verdade.

Talvez a constatação mais surpreendente tenha sido que Nathalie e Hana haviam trocado mensagens. Nathalie aparentemente estranhara o seu silêncio, e sua primeira hipótese havia sido que Haruka confiscara o celular de Daisuke. Hana então se apresentara. Elas haviam trocado mais algumas mensagens depois disso, coisas rápidas e um pouco tímidas, um pouco como Daisuke se lembrava do seu reencontro com Nathalie. A diferença é que ele e Nathalie haviam tido anos de amizade pra encorajá-los a vencer o estranhamento de socializar com vampiros de uma gangue diferente. Em dois anos Hana e Nathalie haviam trocado um total de 14 mensagens, iniciadas por comentários como “eu acho que te vi na rua”, “você era policial?” e “a família do Constantino é legal com você?”. Ficou tocado por esse último. Nathalie demonstrara cuidado pela sua cria! Não haviam conversado muito, mas era mais do que Daisuke havia falado com qualquer subordinado de Akihito, por exemplo.

Daisuke:

Durante a minha ausência você renomeou o contato para “Hana”?

A resposta de Nathalie veio imediatamente, o que o surpreendeu, mas também o deixou feliz.

Nathalie:

Daisuke!

Você voltou!!!

Daisuke:

Voltei.

Ele hesitou antes de fazer a próxima pergunta. Era um tópico delicado pra se falar por mensagem, mas ele achou que perguntar seria uma demonstração de que se importava.

Daisuke:

Como você está?

Nathalie:

Ah, não muito diferente da última vez. Mas de certa forma melhor.

E você?

Para uma resposta tão curta, ela havia demorado bastante para digitar. Daisuke conseguia imaginá-la hesitando, talvez reescrevendo várias vezes, fosse pela carga emocional ou pelo sangue primário de Alana a impedindo de falar demais.

“Eu já estive melhor, mas…” começou a digitar, e então parou. Mas o quê? “Mas agora estou bem”? Não estava bem. Com certeza não estava mais morrendo de fome, definhando aos poucos numa sala acolchoada. Pelo menos deixara isso pra trás. E para fazê-lo, havia se submetido completamente a Haruka. Mesmo que decidisse que falara o que ela queria ouvir pra que ela o alimentasse, e que declarações de obediência e lealdade obtidas sob coerção não contavam, seu organismo conhecera a privação e a mera ideia de passar por isso de novo o fazia tremer e suar e começar a compor pedidos de desculpas para Haruka por ofensas reais e imaginadas. Em que tipo de definição doentia isso seria estar “bem”?

Daisuke:

Eu já estive melhor.

Eu queria conversar.

Nathalie:

Eu acho que ela vai me deixar.

Você tem uma data em mente?

Daisuke:

Eu ainda preciso pedir permissão.

Haruka me quer por perto, ainda não saí da vista dela desde que voltei.

Não sei quanto tempo isso vai durar.

Nathalie:

Parece sério. Devo me preocupar?

Daisuke:

Eu não sei. Acho que não.

Haruka não o deixando sair de casa era diferente de Alana não deixando Nathalie sair de casa. E se não fosse… Daisuke às vezes pensava sobre isso quando começava a clarear, demorando mais do que o de costume para cair no sono. Até onde iria por ordem de Haruka? Já sabia que mataria. Vampiros de outras gangues, ex-colegas policiais, transeuntes inocentes. Não mataria os sobrinhos, disso tinha certeza. Quando pensava em matar humanos aleatórios, pesava a sua consciência contra as lembranças da fome. Uma senhorinha? A fome ganhava. Um jovem pai que deixaria cônjuge e uma criança pequena para trás? A fome ganhava. Adolescentes sem nome? A fome ganhava. Mas se desse aos adolescentes os rostos dos seus sobrinhos — Yuuki devia estar com quinze anos agora, devia estar tão linda! — então a ideia de perdê-los era pior do que a fome. Quando pensava no irmão a lembrança da fome ainda ganhava. Ele deixaria esposa e filhos para trás? Sim. Mas Yuusuke era adulto, e isso parecia liberar espaço o suficiente na consciência de Daisuke. Só podia continuar torcendo pra Haruka nunca descobrir sobre sua vida humana e ele nunca ter de colocar suas teorias sobre culpa e desespero à prova.

Mas quando se tratava de si mesmo, Daisuke não sabia onde estavam os limites. Se Haruka decidisse torturá-lo, a dor seria pior do que a fome? Fugiria dela então? A respiração ficava difícil só de pensar em voltar a passar fome, e não tinha a mesma reação ao lembrar de Haruka quebrando todos os seus ossos. E se Haruka decidisse abusar dele? Os relatos de Nathalie o faziam esperar muita vergonha e culpa. Uma das maiores injustiças da vida: as vítimas sentirem vergonha e culpa. Ele não precisara lidar muito com nenhum dos dois sentimentos em vida. Quanta vergonha e culpa precisaria sentir pra achar que preferia morrer?

Nathalie:

Ok, vai me avisando.

Ele não sabia se isso era sobre a possível data para se encontrarem, ou sobre sua aparente prisão domiciliar. Depositou o celular ao seu lado, tornando a focar no microcosmo do quarto de Haruka.

Como se suas reflexões houvessem convidado a atenção dela, Haruka pausou o vídeo que estava assistindo — andava vendo vídeos de adolescentes japonesas fazendo reviews de material escolar e praticando caligrafias fofinhas — e o interpelou.

— Você está conversando com Nathalie? — Haruka quis saber.

— Sim.

— É difícil você ficar tão absorto assim no celular, e você digitou bastante.

“Isso está longe de ser ‘bastante’, mas ainda assim, muito perceptivo da sua parte.”

Considerando que não saía do alcance visual de Haruka há uns dez ou doze dias, Daisuke não considerava a atenção dela uma quebra de privacidade. Se não estivesse disposto a passar pelo escrutínio de Haruka, não pegaria o celular na frente dela.

— Eu senti saudade dela. — Disse simplesmente.

Haruka inclinou a cabeça para o lado, o avaliando com alguma lógica vampira inescrutável.

— Sua amiga foi muito cooperativa quando eu estava te procurando. Foi ela quem deduziu que você estava com os caçadores.

Daisuke demorou alguns segundos para processar essa informação. Primeiramente, Haruka havia questionado Nathalie. Com certeza acionara Alana para isso. Esperava que não tivesse sido traumático para Nat. E, segundamente… ao falar com Haruka, Nathalie essencialmente salvara sua vida. Foi esse o sentimento que o levou a pedir:

— Será que eu posso vê-la? Eu deveria agradecer.

Haruka pensou sobre o assunto. É claro que nunca poderia só concordar com um pedido dele, tinha que fazê-lo sentir o suspense. Por fim, ela disse:

— Isso seria apropriado. Leve-a a algum lugar especial.

***

Era estranho agir com a bênção de Haruka. Sua criadora praticamente o intimara a levar Nathalie para um restaurante cinco estrelas nas bordas do território de Agonglô. Insistira que, se os dois ficassem juntos o tempo todo e se locomovessem de táxi, ninguém os incomodaria.

— Uau, aqui é… chique. — de dentro do carro, Nathalie olhava para cima. Daisuke pensava na estranheza de ser levado por um motorista, quando normalmente ele era o motorista.

— Eu disse que queria te levar em um lugar legal.

Desceram do táxi. Nathalie olhou para ele, para o prédio, e para si mesma. Daisuke havia pedido que ela colocasse sua “melhor roupa de sair”, e por isso ela arranjara um jeans novo. A calça era preta e colada ao corpo, um estilo que ela normalmente sentia que restringia seus movimentos, mas que exatamente por isso considerou adequado — roupas formais eram feitas para serem desconfortáveis. E agora que não tinha circulação para ser cortada, nem era tão ruim assim. Era só não precisar lutar ou fugir em alta velocidade, e as noites com Daisuke nunca acabavam assim. Também colocara uma blusinha, e deixara pra trás seu moletom de apoio emocional. Se arrependia um pouco dessa última parte, esfregava os braços, se sentindo exposta, mas sabia que de jeito nenhum seu moletom surrado seria adequado num restaurante de gente rica.

— Como vamos pagar por isso?

— Haruka me emprestou o cartão de crédito dela. — Ele mostrou o cartão corporativo preto, com seu design minimalista exclusivo de clientes premium black platinum diamante. — Sem limites hoje. Aliás, ela também emprestou outra coisa.

O motorista do carro abriu o porta-malas e entregou para Daisuke uma caixa elegante.

— Abra. — ele indicou para Nathalie. Ela obedeceu, e de dentro da caixa, removendo cuidadosamente as camadas de papel de embrulho, retirou um casaco felpudo branco que ia quase até seus pés.

— Daisuke… — Nathalie estava sem palavras. Aquele casaco era a coisa mais cara que ela já tinha encostado na vida. Não sabia nem dizer se o achava bonito, era como uma escultura surrealista feita de ouro sólido.

— Você parece sentir falta de usar mangas compridas. E também combina mais com o ambiente.

Ele se esforçava muito para ser persuasivo, e Nathalie cedeu. Vestiu o casaco. Tinha a impressão que seria impossivelmente quente, então era uma sorte que não fosse mais sensível a temperaturas. Se olhou numa vitrine.

— O contraste da minha roupa com esse casaco é tão absurdo que parece proposital. Tipo essas celebridades que vão vestidas pra “fazer uma declaração”.

— Uns brincões de argola e óculos de sol coloridos, e você podia ser, sei lá, uma diretora de cinema cult.

Nathalie imaginou os adereços propostos. Percebeu que fazia tempo que não exercitava sua imaginação para coisas bobas como essa. No fim, concordou com Daisuke. Normalmente queria esconder sua cabeça quase careca e manchada de azul no capuz do moletom, mas com o casaco enorme e o jeans apertado e seus acessórios imaginários, o cabelo raspado também parecia parte de uma escolha de moda ousada. Imaginou quem seria sua “persona diretora de cinema”: ela se chamaria Nathalie… Ostertag. Talvez Østertäag. Não sabia como pronunciar isso, mas isso a tornava mais cult. Seria dinamarquesa. Todos os seus filmes seriam interpretados exclusivamente por mulheres, mesmo os papéis masculinos, como a trupe de Shakespeare, mas ao contrário. Riu alto.

— Eu amei!

Para Daisuke, só essa risada dela já categorizava a noite como um sucesso.

Eu espero ter deixado vocês soft e com um quentinho no coração, porque semana que vem não teremos Técnicas Sanguíneas. O capítulo novo sai dia 05/01/2026, mas semana que vem teremos um e-mail de atualizações sobre meus projetos de escrita, a vida, o universo, e tudo mais.

Como sempre, vocês tornam minha vida muito feliz quando comentam os capítulos, então adoraria receber uma resposta no meu e-mail, ou um comentário nas redes sociais usando #TécnicasSanguíneas.

Até a próxima!

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