Técnicas Sanguíneas — Capítulo 38

Sobre o mercado imobiliário.

Tempo estimado de leitura: 15 minutos

O que vocês acharam da revelação sobre o sangue primário do Daisuke? Pobre da Hana, ela esteve tão confusa esses anos todos… Vocês sabiam que tem um capítulo com o ponto de vista dela nos interlúdios entre a segunda e a terceira temporada?

Já vou deixar vocês avisados que o capítulo da semana que vem será o último do ano. Na semana do Natal terei um e-mail de atualizações, e então uma semaninha de recesso antes de voltarmos em janeiro.

E vocês sabem que nada me motiva mais a escrever do que ter interação com os leitores, então sintam-se livres pra responder esses e-mails, deixar comentários no site, ou postar sobre a história nas redes sociais usando a hashtag #TécnicasSanguíneas ❤️

Banner com fundo degradÊ preto em cima e azul em baixo, mostrando o título em vermelho "Técnicas Sanguíneas, parte 3, memento mori, de A C Dantas" com vários espinheiros no fundo.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 38

Sobre o mercado imobiliário.

Por uma semana, Daisuke não pediu nada a Haruka exceto sangue. Nem teria pedido tanto sangue assim, se ela não tivesse estranhado o fato.

— Daisuke, você não vai me pedir para alimentá-lo?

— Você me alimentou ontem. Duas vezes.

— E você ainda está muito longe de estar recuperado.

O tom de Haruka era tudo, menos preocupado com seu bem-estar. Ela estava mais preocupada com rebeldia, pensando que talvez Daisuke estivesse tentando minimizar a quantidade de vezes que se ajoelhava diante dela.

— Eu não quero te sobrecarregar.

O tom de Daisuke era tudo, menos devoto, apesar da cabeça baixa em contrição. Haruka o examinou longamente.

— Você se preocupa que eu mate um humano para repor o sangue perdido?

Daisuke engoliu em seco.

— Você vai fazer o que bem entender, Haruka, e eu vou fazer o que quer que você mande, incondicionalmente e com o máximo de eficiência que eu puder. Mas, se as minhas preferências contarem pra alguma coisa, eu prefiro não causar a morte de ninguém.

Haruka colocou a mão no rosto dele, virando-o para analisá-lo sob vários ângulos. Daisuke não se opôs.

— Se você vai fazer o que eu mando, então estou mandando não se preocupar com isso e recuperar suas forças. Entendido?

— Sim, Haruka. Nesse caso… será que você poderia me alimentar?

Haruka passou a semana toda chamando Daisuke e Kim para ficarem de prontidão em seu quarto, aguardando para levar recados para suas criadas ou para Agonglô, já que a ideia era não revelar tão cedo que agora se comunicava com ele por mensagens. Kim tentava demonstrar contrição se empenhando em manter uma postura atenta, enquanto Daisuke — cria deste século — mudava de posição, cruzando as pernas e pegando o celular. Só por garantia Haruka o observava com mais atenção nesses momentos. Quando ela o chamava, Daisuke interrompia o que quer que estivesse fazendo e se colocava à disposição dela. Várias vezes ela só o encarou em silêncio, e ele aceitou a atenção dela sem dizer palavra, só voltando a pegar o celular depois que ela desviava o olhar retomava os próprios afazeres. Outras vezes ela pediu para ver o celular dele, e ele lhe mostrou prontamente. Continuava estudando japonês, lia notícias, jogava joguinhos de paciência ou palavras cruzadas. Depois de algumas vezes, Haruka acabou perdendo o interesse.

Durante uma semana, ela também não pediu nada a Daisuke exceto sua companhia.

E então Haruka decidiu que era hora de dar novos testes a seus subordinados.

— Vou sair para caçar. Vocês dois irão me acompanhar.

***

Para Daisuke, a experiência era nova e enervante. Acompanhar Nathalie em uma caçada havia sido um gesto de curiosidade e solidariedade, algo que podia fazer porque eram iguais. Acompanhar sua criadora em uma caçada era um assunto completamente diferente. Não sabia o que esperar. Para Kim, a atividade era rotineira, e sua única reação foi um olhar irritado para Daisuke — a essa altura, era quase um ritual entre eles.

Pra começar, pegaram o carro. Dessa vez Haruka o colocou para dirigir, mas não levou Kim no banco de trás com ela, então os dois segunda-classe ficaram em silêncio hostil no banco da frente até chegar na região do território de Akihito que Haruka escolhera para si. Daisuke notou que era coerente com a localização da casa que Haruka lhe mostrara.

— Kim, estabeleça um perímetro.

Kim parecia querer protestar, olhando de Haruka para Daisuke, mas assentiu e se afastou. Quando ele desapareceu de vista, e até seu cheiro se tornou uma presença fraca, Haruka começou a se mover. Daisuke a acompanhou, mas não muito de perto.

— E eu?

— Você estabelece um perímetro também, mas numa distância que eu consiga te ouvir, e o Kim não.

“Então é isso. Acabou o aquecimento. Hora de ir aos negócios.”

Apesar da certeza de que Haruka usaria a oportunidade para conversarem a sós, nenhum dos dois disse nada durante quase uma hora, durante a qual Haruka atacou quatro pessoas. Daisuke conseguia sentir uma corrente constante de Influência partindo dela, algo que carregava uma ideia simples como “caminho seguro”, e múltiplas vezes pessoas passando por uma rua transversal viraram para tomar o caminho sugerido por Haruka. Quem não queria estar seguro enquanto andava à noite? Ela não atacou todos os que cruzaram seu caminho dessa forma, mas Daisuke não conseguiu definir se ela tinha algum critério.

Quando Haruka se decidia em um alvo ela mudava o foco e a intensidade da Influência, e a vítima ficava paralisada com o olhar vidrado durante o tempo que Haruka se pendurava no pescoço dela. O timing de Haruka era exatamente o mesmo que ela instituía para seus subordinados, e Daisuke podia praticamente contar os segundos durante os quais ela se entregava completamente bebendo sangue humano. Da primeira vez não conseguiu desviar os olhos dela, mas quando Haruka voltou a si ela lhe lançou um olhar que deixou claro que o trabalho dele era garantir a segurança do perímetro, então ele tentou se concentrar mais nos arredores do que em sua criadora.

A quarta pessoa foi um teste. Haruka não o soltou depois do tempo usual. Daisuke notou, e a coisa que ele mais queria no mundo era se dirigir a ela, tirá-la do seu banquete, impedi-la de tirar uma vida. Exceto que Haruka não era Nathalie. Nunca matava humanos por acidente. Sabia ser discreta, é claro. Moderada. Não seria bom sair matando as empregadas, e mesmo nos territórios dos puro-sangues havia um limite de quantos homicídios e desaparecimentos inexplicáveis podiam ser acomodados, mas não tinha escrúpulos em matar. Daisuke se forçou a não olhar.

Quando Haruka depositou o corpo do homem na rua, ela disse, num tom de voz casual e não muito alto, de forma que apenas por conta da audição vampira Daisuke conseguia ouvi-la:

— Ele não está morto. Vai sofrer um pouco durante a recuperação, mas não está realmente em perigo.

— Obrigado, Haruka. — Achava que seria muita presunção achar que ela se continha por causa dele, mas não importava. Haruka podia ter matado um homem e escolhera não fazê-lo, e Daisuke se sentia bem por isso.

— Mas então, Daisuke. O que você tem a me dizer?

Era uma pergunta estranha, já que fora ela a convocar essa pequena audiência, mas Daisuke pensou um pouco e respondeu:

— Como você conseguiu a casa?

Haruka conteve uma risada, as presas ficando à mostra de uma maneira que ela raramente se permitia e, com uma expressão cândida e sincera, respondeu:

— Estelionato.

***

É claro que Haruka sabia cometer crimes, é só que ela havia ficado mais de setenta anos sem praticar. Assassinato era simples. É como andar de bicicleta: você nunca esquece. Fazer parecer um acidente, no entanto, requeria um pouco mais de expertise. Chantagem era até que bem direta, depois que se resolvia a questão de como finalizar a transação. Estelionato e suborno eram um pouco mais complicados. Dois anos atrás, quando Daisuke a havia deixado — ela o expulsara, mas isso era irrelevante — Haruka não saberia como subornar alguém. Da última vez que o fizera fora em cantonês, em outro século. A etiqueta do mundo do crime estabelecia que era rude chegar em alguém e dizer “Com licença, eu gostaria de te subornar. Quanto você cobra?”, mas ela ainda não sabia quais eram os eufemismos usados neste idioma e neste século para fazer a proposta indecorosa da maneira correta.

Ela estaria mentindo se dissesse que não se divertiu descobrindo.

Foi essa história que Haruka contou a Daisuke enquanto ele se certificava que transeuntes desavisados não a veriam pendurada no pescoço das vítimas em vias extremamente públicas.

Haruka havia criado a própria conta bancária em um banco digital — Daisuke ficou impressionado, não achava que ela tinha dominado tecnologia a esse ponto — e descobrira como pesquisar imóveis.

— Mas é claro que eu não podia só passar uma casa no cartão de crédito do meu irmão.

A solução que ela encontrara havia sido superfaturar suas compras em lojas chiques. No começo ela assegurava a cooperação dos vendedores com doses generosas de Influência, mas com o tempo descobriu como e onde ela podia cometer fraude da maneira comum. Parecia ser uma prática bastante comum entre as esposas troféu de políticos e jogadores de futebol, que compunham boa parte da clientela das lojas que ela frequentava.

Começou a fazer investimentos, mas para o capital que havia juntado ao longo dos seus “banhos de loja” não havia um investimento seguro com rendimentos que ela considerasse satisfatórios, e ela não se meteria nos investimentos de alto risco sem uma década cuidadosa de estudos e preparação.

— Então eu comecei a leiloar antiguidades.

Daisuke havia ficado aliviado ao saber que Haruka não contara ao irmão sobre seu plano de adquirir uma casa e não buscara a ajuda dele para obter fundos, mas ficou definitivamente impressionado com a determinação dela. Compra e venda on-line, não importa o quão raros os objetos, parecia algo mundano demais para a vampira. Dela, Daisuke esperava leilões secretos conduzidos em pessoa por gangsters acompanhados de guarda-costas num hotel tão exclusivo que sequer apareceria em buscas da internet.

Mas é claro que Akihito estaria de olho nesses ambientes, então talvez a decisão de Haruka fizesse sentido.

— Eu também visitei muitas joalherias. Durante o dia. Nem eu aguento sair sob o sol tantas vezes seguidas, e precisei compensar a perda de sangue. Eu não pude deixar de notar a inquietação do meu irmão e de Kim quando eu comecei a caçar com regularidade.

Anos atrás Daisuke achava que não beber sangue humano evitava que ele desenvolvesse os instintos territorialistas que governavam a maioria dos vampiros. O retorno de Kim provara o quanto ele estava errado. Agora que sabia que era tão suscetível ao territorialismo quanto qualquer vampiro, Daisuke conseguia imaginar o desconforto de um puro-sangue quando outro puro-sangue começava a caçar em seu território, mesmo quando a puro-sangue em questão era sua irmã.

“Esse é o problema, não é? Que o território é dele, e não deles.” Haruka devia sentir o estranhamento do irmão como uma afronta à própria autonomia.

Por isso ela estava se empenhando tanto no plano da casa.

— Claro que eu jamais me submeteria a um aluguel, e os preços de imóveis nas regiões que considero aceitáveis não estavam colaborando. — Haruka prosseguiu. — Então eu precisei arranjar que dois ou três corpos fossem encontrados no bairro. Isso encorajou o antigo proprietário a se contentar com um preço mais palatável, e ainda teve a vantagem de fazer nosso vizinho adiar a construção da própria casa. Ainda moraremos em um condomínio, mas graças a isso ficaremos suficientemente isolados, e eu aprecio a privacidade.

Daisuke engoliu em seco. É claro que alguém teria que morrer para que Haruka alcançasse seus objetivos. Afinal, assassinato era fácil.

— Você disse que no fim do mês a casa será sua.

— Sim. Estão finalizando a documentação necessária, e então eu farei a transferência da outra metade do valor.

— E então você vai se mudar?

Corada depois de beber de tantas pessoas diferentes, Haruka sorriu e balançou a cabeça.

— Você saberá quando eu for me mudar quando eu for me mudar, Daisuke, e nem um segundo antes.

Nos vemos no capítulo da semana que vem, no qual Daisuke se reconecta com amigos.

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