Técnicas Sanguíneas — Capítulo 37

No qual Daisuke aprende sobre seu sangue primário.

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A essa altura vocês devem estar cansados de me ouvir perguntar o que vocês acharam do último capítulo, então vamos direto ao que interessa, e semana que vem eu pergunto de novo kkk

Banner com fundo degradÊ preto em cima e azul em baixo, mostrando o título em vermelho "Técnicas Sanguíneas, parte 3, memento mori, de A C Dantas" com vários espinheiros no fundo.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 37

No qual Daisuke aprende sobre seu sangue primário.

Num apartamento ocupado de forma ilegal, Hana, as trigêmeas e cinco netos de Constantino jogavam videogames. Os rapazes eram entre uma e duas décadas mais velhos que elas, e preferiam jogos mais antigos que nem sempre estavam traduzidos. Da primeira vez que ela e as trigêmeas haviam aceitado o convite para a noite de jogos, Hana surpreendera a todos pegando atalhos impossíveis no jogo de corrida que jogava pela primeira vez.

— O quê? — Ela dera um sorrisinho — Está literalmente escrito “atalho” na tela.

O jogo estava em japonês.

Depois disso, haviam trocado provocações e gritos de “trapaça!”, mas sempre com leveza. Desde então, os meninos haviam praticado, e essa seria a noite da revanche.

Dafne conversava com um dos rapazes que não fazia tanta questão de jogar, perguntando sobre como eles faziam quando os verdadeiros proprietários do apartamento tentavam enviar corretores durante o dia, e se os vizinhos nunca estranhavam a comoção no apartamento que tecnicamente devia estar vazio. Como não era sua vez, Hana prestava mais atenção na conversa deles do que no jogo. Se possível, queria morar sozinha um dia.

E então sentiu um calafrio tão profundo que sua visão até escureceu por um segundo.

Hana se levantou de supetão, atraindo olhares. Queria explicar que alguma coisa estava errada, que precisava ir embora, rápido rápido… mas cada segundo que se demorava sentia o sangue martelar nos seus ouvidos de um jeito que nunca fizera nem quando era viva.

— Flor, você está tremendo… — Geni se aproximou dela, hesitante.

— Eu tenho que ir.

— Você está bem?

— Eu tenho que ir! — E com isso ela estava na porta, e então fora do prédio, andando sem rumo pela cidade, escolhendo a esmo a direção que fazia o sentimento opressor se aliviar.

***

“Será que essa é a sensação de usar Influência?”, Daisuke se perguntou. Afinal, mesmo não tendo pensado — conscientemente, com palavras ou um comando — a convocação ainda fora como enviar o poder do sangue para um pensamento.

O feito o deixara cansado. Se sentou na sarjeta, segurando a cabeça de um jeito que poderia ser confundido com embriaguez e náusea. Ficou assim por vários minutos, quando seus instintos começaram a dar alarmes confusos. De alguma forma, sabia que os avisos seriam mais claros se estivesse menos exausto.

Levantou-se, e apenas alguns segundos depois Hana apareceu na distância. Ela estava tão pálida, mais do que quando era humana, e isso não parecia normal. Daisuke sabia que ele próprio ficava mais pálido pela falta de sangue, mas não devia haver motivos para Hana se alimentar menos do que precisava. Será que a situação dela entre a família de Constantino era tão precária assim?

— D-daisuke. — Ela gaguejou, parando a alguns metros de distância dele.

— Desculpe por te chamar desse jeito. Espero não ter te atrapalhado?

Ela fechou os olhos e sacudiu vigorosamente a cabeça antes de abri-los de novo. As pupilas dilatadas causavam reações indesejadas em Daisuke, uma espécie de instinto caçador que dizia que, se a pessoa estava com medo, devia ser uma presa em potencial. Pelo menos o sangue vampiro dela quase não tinha cheiro, então não era tão ruim quanto quando um humano tinha a mesma reação.

— Como você está? — ele tentou imprimir um tom tranquilizador à voz.

— B-bem.

— Eu não te vejo desde aquela noite. Como tem sido a vida de vampira?

Hana respirou fundo várias vezes, recuperando um pouco do seu autocontrole. Em uma das respirações, fez uma careta, notando o cheiro de caminhão de lixo que não abandonara Daisuke completamente. Ele notou, e disse, autodepreciativamente:

— Ah, sim. Eu estou nojento. Você por acaso não conhece algum lugar na área onde eu possa tomar um banho?

— Eu… tem o nosso apartamento. Meu e das trigêmeas. Elas não estão em casa.

— Nesse caso, se não for um incômodo…

— Não, de forma alguma! — a voz dela soava mais aguda do que estritamente apropriado para uma pessoa que realmente não estava incomodada, mas Daisuke não se sentia capaz de rejeitar a perspectiva de um banho.

— Nesse caso, guie o caminho.

Hana assentiu, e disparou na frente com velocidade vampírica.

“Ah, não…”

Apesar de tudo, Daisuke se obrigou a segui-la no ritmo dela. Seu humor e concentração pioravam com a fome, mas não podia deixar que Hana — logo Hana! — o deixasse para trás.

No apartamento, Hana se ofereceu para colocar as roupas dele na lavadora. Ele aceitou, disposto a sair do banho e vestir roupas molhadas, mas a máquina também tinha a função de secadora, então Daisuke apenas se demorou no banho, esperando que a água quente lavasse o cansaço junto com o cheiro. Não tinha percebido que estava praticamente sonhando acordado até Hana tirá-lo do seu devaneio.

— Suas roupas estão na porta!

Ele se vestiu. As roupas cheiravam a uma mistura estranha de vinagre e amaciante, mas sem nenhum traço de lixo, pelo que ele era grato. Encontrou Hana sentada na sala, as mãos pousadas no colo, falhando completamente em parecer uma postura casual.

— Obrigado, Hana.

— Eu, hmm… não há de quê.

— Então, como está a sua estada com a família do Constantino?

— Está… Está boa.

— Eles te tratam bem?

— Sim! As trigêmeas são ótimas. Eu aprendi muito com elas. E os outros terceira-classe da família também. Eu achei que não teria muito pra fazer dentro do território em si, mas os primos passam muito tempo se visitando. É sempre divertido, e evita se meter em problemas com as outras gangues.

A empolgação dela ao falar isso foi um alívio para Daisuke. Depois disso ela pareceu até relaxar um pouco, mas ele ainda precisava perguntar:

— E você tem se alimentado bem?

Hana olhou pra ele, espantada com a pergunta.

— Bom, eu acho que Constantino te contou, mas eu passei um bom tempo sem me alimentar. Você parece um pouco pálida, então foi a primeira coisa que eu pensei.

— Ah. — Apesar de manifestar que compreendera o propósito da pergunta, Hana não respondeu imediatamente. Ela respirou fundo várias vezes antes de perguntar. — S… Daisuke, por que você me chamou?

Ele suspirou.

— Porque Haruka me mandou pegar meu celular de volta. Eu sinto muito pela inconveniência.

— Posso… posso só anotar umas informações e avisar alguns contatos?

— Claro. Leve o tempo que precisar.

Hana assentiu, tirou o celular do bolso — Daisuke ficou nostálgico ao ver o tom de branco quente do aparelho, e notou que mesmo após dois anos ele tinha pouquíssimas marcas de uso — e começou a trabalhar de forma determinada, enviando inúmeros “estou devolvendo o celular para o dono original, me liguem no número das trigêmeas” e anotando em um caderninho usuários e senhas de sites e aplicativos antes de deletá-los. O processo era tedioso de assistir, e Daisuke se pegou cabeceando. Achou o fato curioso. Nunca ficaria tão relaxado na presença de outro vampiro, nem mesmo Nathalie, por mais que se forçasse a baixar a guarda na presença dela. Só ficava tão vulnerável quando…

— Aqui. — Hana lhe estendeu o aparelho, e Daisuke o pegou. — S… Daisuke. Será que eu posso te fazer uma pergunta?

“Outra?” ele pensou em brincar, mas Hana parecia séria. Ele assentiu.

A jovem vampira respirou fundo e fechou os olhos. Um gesto tão humano que fez Daisuke sorrir. Após terminar de juntar coragem, Hana o encarou.

— Por que você me transformou?

***

Daisuke olhou para Hana, tão surpreso pela pergunta que demorou para compreendê-la. Seu sorriso foi desaparecendo devagar, dando lugar a olhos arregalados e queixo caído.

— Você não se lembra?

O choque de Daisuke parecia causar desconforto em Hana, que se retraiu no sofá.

— Não? É por isso que estou perguntando? — Em seu nervosismo, as afirmações soavam como perguntas.

— Hana… Você me pediu para ser transformada.

Agora Hana também estava boquiaberta, e Daisuke lhe contou resumidamente sobre aquela noite. Que Haruka o havia punido e testado sua lealdade. Que ele recebera a tarefa de levar uma criada a Haruka, sabendo que a criada seria morta. Que havia falado com ela, e ela aceitara ir até Haruka e morrer, mas que pedira para ser trazida de volta. Que Haruka lhe dera permissão, e o ensinara como fazê-lo.

— Isso… até que faz sentido. Eu… sempre pensei que eu não queria morrer. Eu fantasiava sobre isso… sobre tentar a sorte e pedir pra ser transformada, mesmo o mestre Akihito quase nunca deixando mulheres entrarem na gangue.

— Qual… qual a última coisa que você se lembra?

— Eu… as noites às vezes borravam entre si, sabe? Algumas eram tão iguais… então eu não tinha certeza, mas eu lembrava que começar a esfregar o chão. E então eu não tinha certeza se lembrava de ver você, ou se eu tinha inventado essa parte. Porque pela lógica eu precisava ter cruzado com você em algum momento daquela noite, certo? Mas eu não tinha certeza… eu não sabia se eu tinha te visto. Eu lembrava de te ver, e então… nós dois caminhando até o território do Constantino. Eu achei que tinha inventado a parte de te ver, e que na verdade você tinha me atacado.

— Hana… eu nem poderia. Eu só posso beber o sangue da Haruka.

— Agora eu sei. Mas naquela época eu não sabia. Na minha cabeça fazia sentido, era a melhor explicação pra… — ela hesitou, mas se forçou a continuar — … pra porque eu sinto tanto medo de você.

— Você tem medo de mim? — Assim que Daisuke perguntou, se arrependeu. Soava bobo perguntar uma coisa que ela tinha acabado de dizer, mas ele estava com coisas demais na cabeça e sangue de menos nas veias.

— Muito. — Hana desviou o olhar ao admitir. — Quando você me convocou, foi a coisa mais assustadora que eu senti na minha vida. Hmm. Pós vida. Mas na minha vida também.

Daisuke ficou em silêncio por vários minutos, e também precisou recorrer ao truque humano de respirar fundo para se acalmar. Hana o observava, com menos medo do que antes, mas claramente fazendo um esforço para se livrar de algum pânico residual. Por fim, ele se sentiu preparado para falar.

— Eu acho… que esse é o meu sangue primário.

Hana abriu um pouco os olhos ao ouvir isso. A explicação fazia sentido, mas ela nunca pensara nisso porque evitava pensar em Daisuke, querendo fugir da sensação de medo que permeava a lembrança da sua primeira noite. E porque estava convencida que esse medo vinha de outro lugar. Daisuke continuou:

— Eu me sinto horrível pelo meu sangue primário te fazer sentir medo. Depois que eu descobri sobre o sangue primário… eu acho isso errado. Uma pessoa não devia ter esse tipo de poder sobre outra. Então toda vez que eu vim resolver coisas com o Constantino eu nunca quis forçar um encontro com você pra garantir que não ia acabar usando o sangue primário em você, mas pelo jeito… eu já tinha usado?

— Você me mandou seguir as regras do Constantino.

Daisuke assentiu.

— Desculpe por isso. Você… francamente, você pode fazer o que quiser. Se você gosta de ficar aqui, então Constantino ainda vai exigir que siga as regras dele, mas… se você quiser ir pra qualquer outro lugar, tudo bem. Eu só… — se refreou antes de dizer “só preciso saber onde você está”, se recusava a dar esse tipo de ordem — … só não posso proteger você lá. Akihito odeia que os segunda-classes da Haruka criem terceira-classes. Ele tem uma boa razão pra isso. Então se ele souber de você, talvez ele queira te eliminar, e os homens dele tem livre circulação em mais da metade da cidade.

Hana fechou os olhos, dessa vez parecendo mais calma. Ponderava os fatos.

— Eu gosto daqui. Eu acredito em você sobre a região de livre circulação do Akihito não ser segura pra mim, e o Wilson é um maluco. Mas obrigada por… me dar opções.

Daisuke assentiu, e os dois ficaram em um silêncio bem mais confortável depois disso. Ainda faltava um bom tempo para o amanhecer, e Daisuke poderia ir andando de volta para o território de Akihito num passo tranquilo. A ideia o fazia querer chorar.

Pegou o celular. Abriu o contato de Haruka.

Daisuke

Recuperei o celular. Tenho medo de Yukio ter descoberto pra onde eu vim.

Haruka

Ele não disse nada no relatório para meu irmão. Eu escutei à porta.

Volte imediatamente.

“É claro que eu vou.” Não queria sequer pensar na possibilidade de dormir fora e ficar apagado por sabe-se lá quanto tempo até conseguir voltar para Haruka e pedir pra ser alimentado. No entanto…

Daisuke

Posso pegar um táxi?

No capítulo da próxima semana teremos algumas considerações sobre o mercado imobiliário.

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