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Técnicas Sanguíneas — Capítulo 35
No qual Daisuke não se orgulha de si mesmo.
Tempo estimado de leitura: 17 minutos
No capítulo passado tivemos um POV da Haruka. Vocês gostam de ver as coisas pelo ponto de vista dela? Às vezes eu queria colocar o ponto de vista de mais personagens, e até brinquei um pouco com isso durante o interlúdio entre a segunda e a terceira temporada, mas focar no Daisuke e na Haruka foi uma escolha.
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Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.
Capítulo 35
No qual Daisuke não se orgulha de si mesmo.
A jovem desceu do carro preto na frente da delegacia, olhou para a fachada do prédio, respirou fundo para se acalmar e corrigiu a postura antes de entrar.
Meia dúzia de policiais passando pela recepção estacaram ao vê-la, e pela porta aberta do escritório alguns esticaram a cabeça pra ter certeza que haviam enxergado direito. Não era uma visão comum para uma manhã de quinta-feira. A jovem mulher usava uma yukata rosa com um padrão de flores de ameixa, os longos cabelos negros presos em uma trança.
— Com licença. — Ela disse para o recepcionista. — Eu preciso de ajuda para encontrar alguém.
— Você quer fazer boletim de ocorrência para um desaparecimento?
Ela hesitou, mas assentiu. O atendente também hesitou. A delegacia onde estavam não era exatamente responsável por casos de desaparecimento, apesar de haverem correlações. Lidavam com outra coisa, mas não era algo que podia dizer ao público.
No fim, decidiu só abrir o site da polícia, como se fosse um amigo ajudando a moça a fazer o B.O. on-line. Ela parecia aflita, e havia se deslocado até lá, não seria apropriado mandá-la embora sem nada.
— Certo, vou precisar de um documento de identidade.
Ela assentiu, e das mangas da yukata produziu uma carteira estampada com coisas fofinhas. Entregou um RG.
— Hm… qual é o nome e qual é o sobrenome?
Parte do nervosismo da moça cedeu para dar lugar à exasperação.
— É na ordem que está escrito. Nome Yu Jun. Sobrenome Li.
***
Daisuke sentiu cheiro do sangue de Haruka.
Ele não tomou conscientemente a decisão de se levantar, mas já tinha avançado três metros quando o cano de uma arma parou a centímetros da sua têmpora.
Ele piscou e o mundo finalmente entrou em foco. Engoliu em seco.
— Ei, Charlotte. Eu sinto muito por isso. — Bem devagar ergueu as mãos e tornou a recuar até a parede.
Sua ex-parceira respirou aliviada, mas baixou a arma apenas um centímetro.
— Salado, me dá cobertura.
Pela aparência do cientista, ele também havia se assustado com a aproximação repentina de Daisuke. Meio desengonçado ele afastou o jaleco e sacou a própria arma. Estar armado para interagir com Daisuke era parte do protocolo de segurança, um jeito de aumentar as chances do policial sair vivo caso a tentação fosse demais para o vampiro.
Só quando Salado tinha Daisuke na mira que Charlotte guardou a arma. Era engraçado como Daisuke não sentia o cheiro do medo dela, nem de Salado. Só conseguia respirar o aroma do sangue de Haruka. O único sangue bebível na porcaria do mundo todo. Charlotte tirou do bolso do peito um cartão, e o cheiro de sangue se intensificou. Pousou o cartão no chão e se afastou.
Daisuke esperou ela liberá-lo antes de se adiantar para pegar o retângulo de papel.
O cartão de visitas continha uma data, um endereço, e uma gota do sangue de Haruka.
***
Assim que o sol se pôs na data escolhida por Haruka, Daisuke abriu os olhos sem precisar que nenhum dos policiais o chamasse. Para Charlotte era perturbador, prova definitiva de que até o relógio biológico de seu ex-parceiro era movido pela sede de sangue. Ela e Rivers o escoltariam para o ponto de encontro em uma viatura, e Daisuke se deixou algemar sem protestos.
— Daisuke… você quer mesmo ir?
— Charlotte, por favor para.
Ela olhou pra ele sem entender. Daisuke suspirou.
— Você preferia estar em qualquer lugar do que aqui, não precisa ficar tentando ser legal.
— Eu me importo com você!
Daisuke sacudiu a cabeça. Não sabia se ela mentia para si mesma ou para o benefício da plateia, mas, desde que ele se tornara vampiro, a única notícia que ela queria dele era a da sua morte definitiva. Mas não iria disputar a questão.
— E eu com você, e exatamente por isso eu sei que você não queria estar aqui. Podia ter deixado o Salado e o chefe me trazerem.
A chegada do novo parceiro de Charlotte era o sinal de que estava na hora de saírem. Quer dizer… não dava para considerar “novo” um parceiro de quatro anos, mas, para Daisuke, seu ano de isolamento na mansão de Akihito, seu ano trabalhando para Haruka e seus dois anos de banimento pareciam apenas borrões. Somados eles deviam dar alguns meses, não quatro anos. Será que a eternidade seria assim? A sensação de que uma década inteira havia sido “ano passado”, um século um pouco mais longo que um verão?
“Eu tenho uma chance de descobrir.”
Porque Haruka o havia encontrado, e ele não era suicida o suficiente para negar a convocação dela.
No banco de trás da viatura, Daisuke até tentou se entreter com pensamentos sobre o jogo ter virado e ele ser transportado como um criminoso, mas esse tipo de piada envolvia frases como “o que sua mãe diria se te visse nessa situação?” e essas só não tinham mais graça. Não queria pensar na mãe. Nem em Yuu. Seus sobrinhos. O pai pelo menos falecera antes dessa confusão toda. Mas nem os pensamentos atormentados conseguiram mantê-lo plenamente consciente. Estava tão cansado, e o movimento do carro era relaxante.
Sabia que estavam indo para o sul, o ponto de encontro com Haruka um local quase na extremidade do território. Akihito provavelmente fora informado, e toda gangue do vampiro os veria desfilar até lá. Mesmo que Haruka quisesse se tornar mais independente do irmão, chamar caçadores de vampiros para o território sem avisar ninguém seria um pouco demais.
O endereço era dentro de um campo de golfe. Mostrando um mandado, os policiais conseguiram permissão para entrar na enorme área gramada após o horário de funcionamento, apenas com o pedido de que mantivessem a viatura nas partes asfaltadas. O buraco número 5 ficava em uma colina, e Charlotte escoltou Daisuke para fora do carro para subirem a pé. Rivers foi atrás a uma distância segura, se lamentando pela desvantagem tática de estar no terreno baixo.
Na metade da subida o vento mudou de direção, e Daisuke ergueu a cabeça. Haruka já estava lá.
***
Haruka viu o estado deplorável de Daisuke quando ele surgiu com a caçadora loira no alto da colina. Kim não havia ficado assim durante seu um ano de banimento. Claro que não, ela lhe mandara garrafas de sangue esporadicamente. Daisuke, no entanto, se isolara completamente do mundo. E não é como se um dos subordinados do irmão fosse confiável para levar uma garrafa de sangue para seu segunda-classe. Akihito se regozijaria de saber que Daisuke estava minguando, e ela teria sangrado por nada. A estratégia de Daisuke fora insana, mas quando pensava sobre isso ela própria não via muitas alternativas. Também se perguntava se seus subordinados traidores em Hong Kong estariam com uma aparência parecida em seus caixões de ferro.
Viu a caçadora tirar as chaves das algemas de Daisuke do bolso. Fez um sinal discreto para Kim e concentrou sua Influência na caçadora.
Como um reflexo, Charlotte jogou as chaves na direção de Haruka, e Kim — em cuja presença os caçadores ainda não haviam reparado — as apanhou do ar. Haruka não disse nada, mas encarou Charlotte e indicou Daisuke com o queixo. Charlotte se afastou dele, e Daisuke começou a caminhar hesitante na direção de Haruka. Estava debilitado demais para caminhar com confiança, e em também incerto sobre como Haruka o receberia.
Rivers parou ao lado de Charlotte, a arma amaldiçoada apontando inofensiva para o chão. Haruka podia não ter praticado a Influência tanto quanto seu irmão, mas era o suficiente para incitar os dois policiais a ficarem mesmo depois de terem feito a parte que lhes cabia, fascinados para ver como a cena iria se desenrolar.
Haruka não disse nada, e nem indicou que Kim tirasse Daisuke das algemas. Apenas esperou. Tinha prática nisso.
Daisuke respirou fundo uma vez, e depois com fôlegos rasos. Precisava do ar para falar, mas não conseguia pensar direito sentindo o cheiro de Haruka. Percebeu, alarmado, que estava salivando, e engoliu.
— Boa noite, Haruka. Você me chamou.
Não era uma pergunta.
— Eu achei que tinha te dado um celular para evitar que Yu Jun tivesse que ficar levando recados.
“Então foi assim que ela fez.” Daisuke pensou. Era um alívio saber que puro-sangues não eram invencíveis. Nem ela encararia uma delegacia cheia de caçadores de vampiros.
Ainda sem conseguir se concentrar, Daisuke percebeu que Haruka esperava uma resposta dele. Sua cabeça girava. De fome, de cansaço, de saber que tudo podia acabar bem ali, de um jeito ou de outro. Não lembrava mais qual era a pergunta. Mas sabia o que seria eficaz.
Caiu de joelhos diante de Haruka. No seu estado de fraqueza e sem as mãos para ampará-lo, ficou mais prostrado do que de costume.
— Por favor, me perdoa.
Ergueu o rosto para sua criadora, suplicante.
— O que você quer que eu faça? — Haruka perguntou, e Daisuke hesitou. Sabia que ela o estava testando, mas era como fazer uma prova sem ter estudado a matéria. Com uma tremenda ressaca. Enquanto um bloco de Carnaval desfilava na janela. Será que podia pedir sangue? Não… Haruka sempre falava sobre sangue diretamente. Gostava de lembrá-lo que o alimentava. Como um animal de estimação.
— Será que você pode… me aceitar de volta?
Haruka sorriu. Era um bom sinal. Ela gesticulou, e Kim tirou as algemas de Daisuke.
— Você quer que eu o alimente?
— Sim, por favor.
Daisuke não gostava de como sua voz ficava quase esganiçada de desespero.
— Muito bem.
Haruka estendeu o braço para ele, e ainda de joelhos Daisuke se aproximou mais um pouco. Tomou o braço de Haruka em suas mãos, afastando a manga do kimono. A visão daquele kimono vermelho bordado com peônias só não era mais bem vinda do que a do antebraço delicado que ele escondia. Sentiu as gengivas ressecadas repuxando ao redor das presas. Não sabia se as presas de fato cresciam, mas a sensação, e provavelmente a aparência, deviam ser de presas alongadas. Se inclinou para frente, a antecipação da mordida fazendo o sangue circular em seu corpo morto-vivo… e então parou.
Havia alguma coisa profundamente errada na visão da pele de Haruka sob a manga do kimono. Não era uma brancura ocidental, mas a palidez vampírica que permitia inclusive enxergar o pálido caminho azulado de uma veia. Soltou o braço dela e endireitou o tronco, olhando para sua criadora novamente.
— O que foi, Daisuke?
— Eu não posso fazer isso. — abaixou a cabeça, e disse as palavras que Haruka queria ouvir — A sua pele é valiosa demais para ser perfurada pelas presas de um segunda-classe.
Daisuke sentiu quando Kim relaxou. O outro vampiro havia estado preparado para dar o bote, e Daisuke não havia notado. Se tivesse ousado morder Haruka, só notaria quando estivesse morto.
Haruka riu.
— Que bom que você sabe. — ela disse, e mordeu o próprio braço.
***
Alívio.
O sangue de Haruka tinha gosto de não morrer, de ter energia para acordar toda noite e de conseguir se concentrar em diversões inócuas e outros prazeres da vida.
Naquele momento, Daisuke estava tão entregue que não se lembrava da plateia, mas depois de um tempo que pareceu ao mesmo tempo infinito e curto demais, recobrou um pouco da consciência e percebeu que não ligava. Kim podia vê-lo vulnerável. Charlotte podia vê-lo monstruoso, bebendo sangue e gostando disso. Rivers podia vê-lo humilhado. Qualquer coisa, desde que pudesse matar a fome.
E então Haruka se desvencilhou dele, gentilmente, mas imparável como raízes de árvores quebrando rochas.
Daisuke arfava. Era sempre um solavanco quando tinha que parar de se alimentar, mas, no estado em que se encontrava, Haruka cortando o fluxo do sangue era o equivalente de uma batida de carro em alta velocidade. Ergueu o rosto pra ela. Sentiu algo molhado escorrendo pelo queixo, e limpou a gota de sangue perdida com o polegar, lambendo o dedo para não desperdiçá-la. Haruka assistiu com um sorriso críptico.
Quando o silêncio entre eles estava ficando insuportável, Daisuke pensou em pedir mais sangue. Haruka falou antes dele:
— Daisuke, você vai seguir minhas ordens?
— Sim. — Não hesitou. Sabia que podia se arrepender disso depois, mas não podia deixar que Haruka o banisse de novo. Se ela quisesse, nunca mais falaria mal de Akihito, tentaria se dar bem com Kim. Qualquer coisa.
— Mesmo se eu te mandasse matar essa caçadora de vampiros?
Dessa vez, Daisuke sentiu o cheiro do medo de Charlotte. Também sentiu vergonha, porque não era uma decisão difícil. Não se enganava achando que sua ex-parceira ainda era uma amiga. Não a odiava, mas não podia nem dizer que seria doloroso. No máximo seria triste. Lançou um olhar pesaroso para a policial. Seu olhar cruzou com o de Charlotte, num pedido de desculpas pela própria fraqueza e sua condição de vampiro.
— Sim. — respondeu a Haruka em voz alta.
— Bom. — a vampira sorriu. — Mas eu não vou te mandar fazer isso hoje.
Charlotte e Rivers voltaram a respirar, e Daisuke podia chorar de alívio. Não queria matar sua ex-melhor amiga e o novo parceiro dela.
Ele o faria, se necessário, mas não teria orgulho disso.
Nos vemos no próximo capítulo, no qual Daisuke e Yukio voltam à velha rotina.
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