Técnicas Sanguíneas - Capítulo 18

No qual Daisuke aprende sobre linhagens e transmite um recado.

Tempo estimado de leitura: 11 minutos

Refletindo que ter terminado de escrever a história inteira antes de começar os envios é importante para não encontrar imprevistos e largar vocês com uma história pela metade ou updates mega irregulares, mas também tira um pouco a emoção que eu tinha na época das fanfics de ficar avisando “já estou com cinco capítulos prontos”, “estou escrevendo o capítulo 37” etc.

Também estou estudando as opções de segmentação da newsletter para os capítulos de Técnicas Sanguíneas irem só pra os assinantes que querem ler, e não ficar entupindo a caixa de entrada dos outros. Só estou refletindo sobre como implementar isso, porque tem gente que guarda para ler tudo no final, e se eu mandar uma informação nos capítulos talvez eles não vejam. Enfim, ainda pensando, se você ler isso mesmo fora da semana do envio e quiser opinar, pode responder o e-mail ou usar os comentários na versão on-line!

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 18

No qual Daisuke aprende sobre linhagens e transmite um recado.

Agora que podia se comunicar com Haruka sem o intermediário de Yu Jun, Daisuke voltou às suas rondas noturnas. Desde que Haruka falara com Agonglô, Daisuke esperava uma oportunidade de começar a explorar o território adjacente. Queria testar se Yukio ainda o seguiria, mas pra falar a verdade não captava sinais de seu perseguidor desde seu pequeno passeio sob o Sol.

“Será que eu estou cheirando queimado demais pra ele me seguir, ou ele só desistiu?”.

Esse era outro fato interessante: havia notado que desde que haviam saído de dia, Haruka estava quase “sem cheiro”, como que mesclada ao cheiro das construções e mobiliário queimados pelo sol. Supunha que estivesse sofrendo dos mesmos efeitos. O cheiro se restaurava conforme se alimentavam, ele de Haruka e ela das criadas.

Em uma dessas noites em que Daisuke ia ao quarto de Haruka pedir para ser alimentado, o assunto acabou surgindo.

— Haruka, depois que eu tiver explorado um pouco o território do Agonglô eu acho que devia ir falar com o Weiss sobre o acordo de livre circulação.

— Muito bem. Creio que isso será útil.

Aproveitou para propor a ela outra ideia:

— Eu sei que seu irmão tem o acordo de livre circulação com Weiss e Agonglô, mas não é como se você tivesse vinte subordinados caçando toda noite. O que você acha de propor o mesmo acordo para os outros puro-sangues da cidade?

Daisuke sentiu a atmosfera mudar imediatamente. De alguma forma havia ofendido Haruka. Por um segundo que parecia uma eternidade, ficou pensando se ela quebraria seus ossos de novo. Nos meses que haviam se passado desde que transformara Hana, nunca havia tido a impressão de que Haruka ia machucá-lo diretamente. O máximo que ela havia feito, umas poucas vezes, fora rejeitar o pedido de alimentá-lo, clamando que estava indisposta. Na noite seguinte ela sempre o alimentava, mas a possibilidade de que ela não o fizesse dava a Daisuke a certeza de que estava recebendo um aviso. O que mais poderia ser? Afinal, vampiros não ficavam doentes, então essa história de “indisposição” parecia apenas uma desculpa.

“Quer dizer… vampiros não ficam doentes, né?” depois de descobrir que podia andar no sol, várias de suas crenças fundamentais estavam sendo abaladas. Claro que sair durante o dia havia sido uma experiência horrível que Daisuke esperava nunca mais repetir. Será que apagar por 48 horas contava como “estar indisposto”?

O olhar de Haruka não diminuiu de intensidade, mas Daisuke se recusava a se desculpar. Idealmente não iria nem parecer arrependido, mas sabia que sua expressão preocupada passava essa impressão. Finalmente a vampira relaxou um pouco, e disse simplesmente:

— Só há três puro-sangues nessa cidade. Dois deles moram nessa casa, e eu já falei com Agonglô.

Ele esperou, mas Haruka não disse mais nada. Seria forçado a perguntar, independente das consequências.

— Então os outros líderes de gangue... ?

— Eles não são puro-sangues.

O tom dela era ríspido, mas após alguns segundos ela percebeu que a confusão de Daisuke era genuína.

— Weiss é mestiço. — ela disse, como se isso explicasse alguma coisa. — E Wilson é... um primeira-classe.

— Todos os puro-sangues não são primeira classes?

Por décadas os caçadores de vampiros no DECEPA haviam utilizado os termos como intertrocáveis.

— São duas coisas completamente diferentes! Pureza do sangue é uma questão de linhagem. Eu e meu irmão somos filhos de vampiros que são filhos de vampiros. Nossa família carrega poder e conhecimento mágicos há milênios. Primeira-classes são... aberrações. Eles não são segunda-classes, porque não foram transformados, mas não são puro-sangues, porque não tem ancestralidade.

— Peraí... você está dizendo que eles só... aparecem? Como um tipo de "vampirismo instantâneo"?

Era a coisa mais assustadora que Daisuke já tinha ouvido.

— Eu não sei! — Haruka alteou a voz, defensiva — Ninguém sabe, por isso é uma aberração.

— Certo... — ele baixou o tom, torcendo para Haruka ainda aguentar mais algumas perguntas. — Então Wilson é primeira-classe, e Weiss é mestiço de...?

— Primeira-classe e puro-sangue. A mãe dele era de uma família até que prestigiosa na Europa. Ela saiu de casa pra se juntar com um primeira-classe pé rapado na América, foi um escândalo. Se dependesse de mim não nos misturaríamos com ele, mas Aki parece achar que só a aliança com Agonglô é insuficiente para manter uma posição na cidade.

"E ele provavelmente está certo..."

Se Akihito compartilhasse metade do desprezo que a irmã sentia pelo "mestiço" — Daisuke testou a palavra em sua mente, e decidiu que ela era horrível — então ele devia ser capaz de disfarçar muito bem, porque Weiss não era do tipo que ignorava uma ofensa pessoal em troca de uma aliança política.

Décadas de coleta de informações o Departamento de Contenção de Eventos Paranormais havia deduzido algumas coisas sobre o comportamento de cada puro-sangue — ou que eles achavam ser um puro-sangue — baseado em como as gangues eram administradas. Os arquivos da polícia diziam que, antes da chegada de Akihito, Weiss era o líder de gangue mais briguento. Wilson, Constantino, Agonglô... ele brigava com todos, apesar de voltar a maior parte do seu antagonismo para os dois primeiros. Com Agongô existia uma espécie de trégua instável. As brigas com Constantino também não se tornavam muito profundas, já que a separação entre os territórios era considerável. Já Wilson... as brigas entre as gangues do oeste e do norte eram sangrentas e frequentes, mas chegavam a finais abruptos quando Wilson diminuía seus próprios números até a vizinhança do Parque da Torre ficar vazia e territórios deixarem de ser um problema.

— E o Constantino? — Daisuke sabia que estava testando sua sorte, mas precisava aproveitar que Haruka parecia comunicativa.

— Ele é um segunda-classe. Só que velho.

Isso levantava a questão sobre quem era o puro-sangue... ou primeira-classe... que o havia transformado. Essa pessoa havia morrido? Afinal, não tinham registros de vampiros de classe baixa andando soltos por aí, seus criadores normalmente os mantinham por perto. De fato, o DECEPA suspeitava que houvesse algum tipo de poder que um vampiro exercia sobre as pessoas transformadas para evitar que fugissem e tentassem contato com suas vidas antigas. Mas se Constantino tivesse fugido e soubesse um jeito de evitar isso...

— A diferença ficou clara agora? — Haruka o trouxe de volta para a realidade.

— E por ele ser um segunda-classe você não vai falar com ele? — Daisuke ainda estava pensando em Constantino, tentando retomar a ideia de conseguir passagem por todos os territórios da cidade. — Eu não digo nem pessoalmente, mas quem sabe mandar um recado…

— Daisuke. Acho que você não entende. Segunda-classes são... vampiros de segunda classe. Cidadãos de segunda classe. Ou eles nos pertencem, ou eles pertencem a nossos amigos e inimigos, mas não nos associamos com eles. Por que você acha que eu abro minhas próprias veias pra te oferecer sangue?

Daisuke sempre havia se perguntado isso. A experiência com Charlotte lhe mostrara que a mordida de vampiro não doía em suas vítimas, mas será que a mordida em outro vampiro também era sem dor? Lembrou-se de seus infortúnios logo no início da transformação. No meio de uma briga doía, mas quando Alana se debruçara sobre ele depois de congelá-lo no corredor ele não sentira a mordida, apenas a tontura conforme o sangue deixava suas veias. Havia mordido o próprio pulso uma vez, confirmando que a própria mordida doía. Parecia estranho que Haruka escolhesse infligir dor a si mesma se a mordida de Daisuke fosse neutra.

Agora ela oferecia outra explicação.

— Minha pele é valiosa demais para ser perfurada pelas presas de um segunda-classe. É bom que você se lembre disso, porque você pertence a mim.

"Então é isso."

Daisuke aquiesceu.

— Vou me lembrar disso.

"Vou me lembrar que minha criadora é, além de todo o resto, racista."

E ele se ajoelhou diante dela para se alimentar, porque era literalmente o único sangue que podia beber.

***

Outra razão para Daisuke preferir começar explorando o território de Agonglô era porque era mais fácil sair despercebido para a área neutra de lá. Se mantinha nas bordas, e mantinha suas incursões rápidas para que, caso algum membro da gangue de Akihito o visse, tudo parecesse uma grande coincidência. Enquanto isso, mantinha os olhos abertos para membros da gangue de Constantino. Daisuke se lembrava de vários deles da sua época de caçador.

Agora que tinha um celular, havia começado a buscar na internet “comércios abertos perto de mim”. Era mais prático do que fazer um pente fino nos bairros e anotar em seu caderninho, mas não demorou muito a perceber que nem sempre os pontos de interesse estavam marcados. Além do comércio ilegal, algumas coisas simplesmente estavam desatualizadas: um mercadinho 24 horas que falira, um bar que mudara de endereço, uma pizzaria que costumava atender até às 4 da manhã mas agora encerrava suas atividades às 2 e nunca corrigira a informação no Google. Daisuke era apaixonado pela sua cidade, e precisava admitir que redescobri-la no modo noturno estava sendo mais prazeroso do que esperava.

Também precisava admitir que às 3 da manhã eram um horário muito solitário. Uma quantidade razoável de estabelecimentos abria às 4 ou fechava às 2, mas apenas os verdadeiramente 24 horas estavam abertos às três da manhã. Quer dizer, não estava contando baladas e salões de festa. Nunca fora muito fã desse tipo de diversão, e era praticamente um pedido para topar com vampiros e caçadores num jogo de gato e rato, por isso Daisuke preferia ambientes mais calmos. Porque haviam tantos barzinhos, mas nenhuma papelaria noturna? Loja de jardinagem 24 horas? Começava a desenvolver um carinho genuíno pelos mercadinhos e farmácias, e seus atendentes entediados e de aparência cansada que faziam seu mundo noturno parecer menos vazio.

Foi nos arredores de uma dessas que encontrou o que procurava.

Daisuke havia entrado na farmácia mais por hábito do que qualquer coisa, para não ficar olhando o celular no meio da rua, mas se demorou lá um instante, vendo se precisava de outro xampu ou se o estande de revistas na porta tinha alguma coisa interessante. Saiu dando um “boa noite” na direção genérica do atendente, e ao sair notou um vampiro de terceira ou quarta classe do outro lado da rua, como se tivesse acabado de virar a esquina. Ao ver Daisuke saindo da farmácia ele pareceu desapontado e estava prestes a dar meia-volta.

— Espera.

O vampiro congelou ao ouvir Daisuke chamá-lo.

— Você é da família do Constantino. — Daisuke insistiu.

— Eu não quero brigar. — o vampiro avisou. Havia sido transformado mais novo do que Daisuke. Talvez da idade de Hana.

Daisuke quase perguntou se ele a conhecia, mas parou. Não sabia o quanto Hana era conhecimento comum da gangue de Constantino, e nem como fora a recepção dela pelo resto da “família”. Em vez disso disse:

— Eu tenho um recado para a Bárbara.

— O que você quer com a minha mãe?

O jeito como até os terceira e quarta classes aderiam ao joguinho de família seria até fofo se não fosse meio perturbador.

— Nada, mas eu achei que seria muita presunção da minha parte querer mandar um recado direto para o seu avô.

O rapaz pensou um pouco.

— Então o recado é seu, não do seu chefe?

Daisuke assentiu, mas reformulou:

— O recado é meu, não da minha chefe.

Isso deixou o rapaz um pouco mais curioso.

— Tudo bem, eu transmito seu recado. O que você quer que eu diga?

— Eu prefiro anotar.

Tirou o caderno do bolso e anotou o próprio número, mas hesitou em assinar. Quais a chances do garoto ser pego num conflito de gangues e um papel com seu nome levar Akihito a investigá-lo? Quantos outros vampiros de ascendência japonesa podiam ter um recado para Bárbara que por acaso era um número de telefone?

“Ah, a paranóia, minha nova amiga...”

Entregou o papel sem assinar, e o filho de Bárbara não perguntou do que se tratava, apenas observou os arredores, lançou outro olhar contrariado à farmácia e partiu o mais rápido que sua velocidade vampira lhe permitia. Daisuke ficou impressionado. Sabia que podia alcançar essa velocidade eventualmente, mas não achava que conseguia uma aceleração instantânea tão grande assim.

Anos de caça aos vampiros lhe fizeram considerar ligar para o número de denúncia e avisar que um vampiro estava abordando com certa regularidade os funcionários de uma farmácia. Seria tão fácil armar uma emboscada e pegá-lo no ato… na verdade era o único jeito de pegar um vampiro: invasão de propriedade, porte ilegal de arma, assalto, abdução. Mas o rapaz era cria de Constantino e Daisuke tinha uma dívida para pagar.

No próximo capítulo de Técnicas Sanguíneas aprendemos um pouco sobre os territórios de Agonglô e Weiss.

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