Técnicas Sanguíneas - Capítulo 17

No qual aplicativos de celular são bastante pessoais.

Tempo estimado de leitura: 9 minutos

E aí, o que vocês pensam sobre a Haruka caçando? Vocês concordam com o Daisuke que ela tem mais cara de art nouveau ? (Se você não lembra o que são art nouveau e art decó, por favor aceite este humilde meme:)

meme composto por uma frase em inglês e duas imagens. A frase está traduzida na legenda, e as imagens são decorações no estilo art deco - padrões geométricos, linhas bem marcadas - e art noveau - curvas sinuosas imitando árvores e flores.

Tradução: “Não, não, não! Anões são art decó; elfos são arte noveau!”

Outra coisa: finalmente lancei o conto “Urbânides”!

O conceito por trás de “Urbânides” é que, da mesma forma que ninfas dos bosques são dríades e ninfas dos rios são náiades, cidades têm direito a suas próprias manifestações antropomórficas. Vocês podem adquirir Urbânides na Amazon.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 17

No qual aplicativos de celular são bastante pessoais.

A loja com celulares de designer ofereceu a Haruka um catálogo, que ela folheou com pausa. As bochechas dela estavam coradas, e Daisuke não tinha como não se lembrar da morte de Hana. Claro, o garoto da loja fora deixado vivo, apenas desmaiara pela perda de sangue. Daisuke esperava que ele ficasse bem, o batimento cardíaco e a respiração ainda estavam normais. O estresse de sair de dia e distrair os vendedores enquanto Haruka se alimentava já estava começando a sobrecarregar o ex-caçador. A essa altura ele não conseguia prestar atenção no que estava acontecendo, e em algum ponto da transação Haruka se compadeceu dele e o mandou esperar no carro. Ele sequer reparou quando ela saiu sem carregar nenhum pacote, mas mesmo que tivesse reparado não estranharia: era comum que depois de uma noite escolhendo roupas e acessórios Haruka apenas mandasse entregar seus itens favoritos na mansão. Melhor do que esperar Daisuke carregar e descarregar as compras no porta-malas.

Quando retornaram à mansão, Daisuke dormiu por dois dias inteiros.

***

Daisuke acordou sedento e desorientado. Sentia o cheiro de queimado impregnado em si mesmo, e não tinha certeza se isso era algo preocupante. Estava tentando decidir se tinha energia o suficiente para ir tomar um banho, ou se devia cair no torpor novamente. Afinal, Haruka havia dito que mesmo que ele ficasse completamente sem sangue, uma hora acabaria juntando energia o suficiente para se levantar. Foi poupado da decisão pela chegada de Yu Jun.

— A senhorita Haruka mandou chamá-lo.

Ele estava de pé antes que ela terminasse de dizer o nome de Haruka. Sentia que o diálogo estava se tornando repetitivo — não era como se Haruka enviasse algum recado que não fosse uma convocação, e a convocação era sempre para o quarto dela. Ficou imaginando que outros recados Haruka poderia lhe mandar. “Me encontre no parque às 5”? “Vá comprar uma tesoura de borda serrilhada”? Acabou se locomovendo tão rápido que ao parar diante da porta de Haruka a cabeça girou.

Não teve nem tempo de bater.

— Entre, Daisuke.

Ele obedeceu, e de seu lugar usual Haruka o avaliou.

— Você está com uma aparência terrível.

“Bom dia para você também, Haruka...”

— Se eu soubesse que você estava com as reservas tão baixas eu teria te alimentado antes de sairmos anteontem.

Isso teve o poder de fazer Daisuke parar.

— Anteontem?

— Quando chegamos você dormiu a noite inteira, depois o dia inteiro, e já passou bastante da meia noite. Então sim, anteontem.

Ainda com a cabeça funcionando na metade da velocidade, Daisuke pensou que isso explicava porque se sentia tão mal. O gasto de energia para sair sob o sol fora tremendo, e ainda não havia reposto suas forças. Ficou parado olhando para Haruka, e ela devolveu o olhar calmamente.

Finalmente ele percebeu o que ela estava esperando. Sentou-se de joelhos na frente dela.

— Será que eu posso tomar um pouco de sangue, por favor?

— Mas é claro.

Haruka se levantou, a graça vampira evitando que o kimono elaborado atrapalhasse seus movimentos. De pé diante de Daisuke ela ergueu uma das mangas e mordeu o próprio antebraço. Ela tinha que ficar com as presas fincadas lá um instante, do contrário as perfurações começariam a fechar antes que o sangue estivesse fluindo. Só então estendeu braço para Daisuke, que segurou delicadamente acima e abaixo da marca de mordida, acertando um ângulo confortável para se debruçar sobre ela e começar a beber.

“Confortável para quem?” Se perguntou. Objetivamente, sabia que detestava o fato de ter que se ajoelhar na frente de Haruka toda vez, mas não conseguia pensar muito nisso. Estava faminto, e essa era sua única fonte de alimento. Ele se deixou levar pela sensação, sabendo que se Haruka se sentisse minimamente desconfortável, ela o interromperia.

Dito e feito, antes que Daisuke estivesse saciado ela usou a outra mão para afastá-lo. Não era uma recusa definitiva: ele tinha a opção de pedir por uma segunda dose, se assim o desejasse.

“Eu não preciso disso.” Daisuke tentou se convencer. Só porque Haruka não havia matado o rapaz da loja, não queria dizer que ele queria encorajá-la a morder mais gente.

Mas estava com tanta fome…

— Posso beber mais um pouco?

Haruka assentiu para ele. Estava sorrindo. Agora que Daisuke estava um pouquinho menos desesperado, não gostava disso.

— Agora que você está alimentado, — Haruka disse, assim que suas feridas começaram a se curar — me mostre como se configura um celular.

***

Era estranho ver Haruka lidando com tecnologia. Em algum ponto da história da humanidade ela havia estado inteirada do que havia de mais moderno no ramo, mas isso fora antes da invenção da interface gráfica. Touchscreen a fascinava. Daisuke mostrou a ela como desativar o feedback tátil na tela e ela o encarou como se ele fosse maluco. Aparentemente ela gostava das micro vibrações quando apertava um botão. Por sorte ela não quis manter o som de resposta das teclas. Se tivesse tentado isso, Daisuke se sentiria forçado a intervir com um discurso sobre “imagina você toda séria na ópera, daí decide mandar uma mensagem e fica aquele barulhinho irritante plop plop plop!”. Não tinha certeza se sobreviveria a noite caso falasse algo assim.

Algumas partes do processo eram estranhas: para um ser humano Daisuke recomendaria guardar a caixa do celular para ter acesso ao número de série do aparelho em caso de roubo ou furto. Haruka não corria esse risco, mas guardou a caixa mesmo assim, com a nota fiscal dentro — uma preocupação que ele próprio nunca havia tido. Uma espiada rápida nos números da nota fiscal revelaram que o aparelho dela custara um mês e meio de salário de um policial do Departamento de Contenção de Eventos Paranormais. Olhou para o aparelho mais uma vez. O corpo do aparelho era vermelho, com tons e texturas diferentes formando aquele padrão que o lembrava de caudas de pavão ou os leques que abanadores reais usavam para refrescar os faraós. Não querendo menosprezar toda a bagagem do artista mas… já tinha visto aquele design uma dúzia de vezes. Talvez houvesse uma tecnologia interessante envolvida em fazer o vermelho metálico e o vermelho fosco ficarem no mesmo material, ou alguma outra coisa que justificasse o preço absurdo.

Ou não, porque gente rica era um mistério incompreensível.

— Que tipo de aplicativos eu deveria colocar?

Detestava que a resposta para as perguntas de Haruka eram todas “depende”. Se entendesse direito o que a vampira queria, seria muito mais fácil, em todos os aspectos.

— Acho que primeiro de tudo, um aplicativo para mensagens. — hesitou um pouco antes de sugerir — Talvez o aplicativo do banco.

— O que você vai colocar no seu?

Era uma excelente pergunta. Agora que Daisuke não tinha mais contas bancárias ou redes sociais, o que fazer? Criar uma conta com avatar de personagem de anime para interagir com fandoms de séries? Não ousava buscar seus amigos e conhecidos, então ia seguir quem? Celebridades?

— Eu estou pensando em alguns aplicativos de estudo. Pra aprender japonês.

— Você sabe que eu não faço questão que você aprenda.

Daisuke deu de ombros.

— É um bom jeito de espionar os subordinados do Akihito. E uma cortesia com as senhorinhas que trabalham aqui e não falam português.

Haruka sempre gostava quando ele falava sobre espionar Akihito. Se perguntava se ela própria fazia alguma coisa nesse front, ou apenas se contentava em deixar Daisuke fazer o trabalho sujo. Não tinha certeza do quanto o desejo de independência dela era real e o quanto era uma fase rebelde. Nem tinha certeza se ela tinha acesso à própria conta bancária, ou se apenas usava o cartão fornecido pelo irmão.

— É realmente possível aprender um idioma assim?

“Depende, depende, depende...”

— Só com o aplicativo é difícil, mas se você tiver bastante contato com o idioma… — olhou ao redor de um jeito que abrangia a casa, os vampiros que nela habitavam e a criadagem.

— E o que mais?

Se quando ele era humano tivessem dito para Daisuke que o conteúdo do telefone de alguém era algo extremamente pessoal, ele teria pensado em fotos e mídias sociais. Se tivessem dito a ele que os aplicativos de mobilidade urbana e fatos aleatórios e joguinhos eram algo extremamente pessoal, ele acharia que a pessoa estava inventando moda. E ainda assim, o fato de que Haruka queria saber exatamente como e para quê ele planejava usar seu telefone era muito enervante.

— Eu ainda não sei, Haruka. Com certeza alguns jogos, música, provavelmente um aplicativo de leitura…

Com esse último item Haruka se empertigou. Pegando a deixa, Daisuke mostrou para ela os poucos aplicativos de leitura que conhecia. Não era tão leitor assim, mas aprendera uma coisa ou outra com o irmão e a sobrinha.

“Eu não deveria estar pensando neles.”

Aparentemente Haruka gostava muito mais de ler do que a parca quantidade de livros no quarto dela indicava. Ela se distraiu por um bom tempo procurando seus livros favoritos — a maioria dos livros com os quais ela era familiar já estavam em domínio público — e olhando as outras opções disponíveis. De repente se levantou e foi foi até a escrivaninha. Tirou da gaveta uma caixa de celular.

— Este é o seu. Veja o que acha dele, coloque as suas coisas, depois eu quero ver como ficou.

Definitivamente invasivo.

***

O aparelho que Haruka escolhera para ele era branco, mas não o branco plástico e esterilizado dos telefones comuns. Era um tom quente, quase na cor creme. Não seria sua primeira escolha, particularmente preferia preto ou azul, mas Haruka não pedira sua opinião durante a compra.

Já estava quase amanhecendo quando ela se deu por satisfeita com a consultoria tecnológica de Daisuke. Ela quis saber o que cada aplicativo no aparelho dele fazia, e a lógica que ele escolhera para organizá-los, e então ele teve que ensiná-la a criar mais de uma tela inicial para poder dividir os aplicativos de forma temática.

— Então é isso? — ela perguntou — Não falta mais nada?

— Trocar contatos. Pra você poder me chamar quando precisar.

Salvou o contato de sua criadora como “Haruka”. Parecia algo tão pequeno, tão banal… e aquele nome de seis letras controlava todo o seu futuro.

No próximo capítulo de Técnicas Sanguíneas Daisuke aprende sobre linhagens e deixa um recado.

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