Técnicas Sanguíneas - Capítulo 16

No qual descobrimos que Haruka caça.

Tempo estimado de leitura: 10 minutos

E aí, como vocês estão? Curtindo sua novelinha de vampiro? Eu admito que nunca pensei em começar uma hashtag #TecnicasSanguineas no Twitter nem nada, mas eu adoro saber a opinião das pessoas conforme elas leem, então bem que a gente poderia fazer isso, né?

Em todo caso, nada a declarar por enquanto, aproveitem mais um capítulo de Técnicas Sanguíneas: Sol Cruel.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 16

No qual descobrimos que Haruka caça.

— Certo. Pra onde vamos?

— Rua dos Santos.

E finalmente Daisuke se sentiu plenamente acordado.

— Mas isso é na zona livre!

A nordeste da zona neutra no centro da cidade, entre os territórios de Wilson e Constantino, havia um bairro com concentração alta de hospitais. Toda aquela região, incluindo as duas faculdades, os prédios destinados como dormitórios de estudantes e o Cemitério das Rosas, era considerada “zona livre de vampiros”. Na área neutra ou em seus respectivos territórios, vampiros só podiam ser abordados pelos caçadores se fossem pegos em flagrante atacando um ser humano ou cometendo uma atividade ilegal qualquer. Na zona livre, o mero fato de estar lá era razão o suficiente para levar uma bala amaldiçoada na cabeça.

— Por acaso os caçadores ficam patrulhando a área durante o dia? — Haruka parecia achar graça no ultraje dele.

Ela estava certa. As atividades do Departamento de Contenção de Eventos Paranormais não se encerravam completamente durante o dia, mas ficavam reduzidas a tarefas de escritório e reconhecimento. Durante o dia era, afinal, o melhor horário para verificar uma casa possivelmente mal-assombrada que engolia visitantes que ousassem entrar nela à noite. Mas patrulhas? Essas eram interrompidas.

Se ele ainda tivesse coragem de passar informações aos caçadores, teria achado essa uma revelação bombástica. Do jeito que as coisas haviam se desenrolado, apenas suspirou.

Haruka não brincava em serviço: a Rua dos Santos tinha uma loja chique de uma das melhores marcas. O momento de descer do carro foi outro suplício, mas assim que saíram do sol e o ar condicionado ajudou a aliviar a sensação de “socorro, eu estou queimando” seus pensamentos foram levados numa direção completamente diferente.

Em primeiro lugar, achava graça em como Haruka tinha cara de rica. Não sabia exatamente como os atendentes sabiam, mas essas pessoas que trabalhavam em loja de gente rica sempre sabiam. Se lembrava de quando Yuusuke estava prestes a pedir a então namorada em casamento. Os dois haviam entrado em uma joalheria chique. Não tão chique que as peças não tivessem os preços expostos, mas chique o suficiente para que nenhum atendente se oferecesse para ajudá-los, já que os dois “claramente” não tinham dinheiro para comprar nada ali.

“Praticamente o evento formador da nossa consciência de classe.”

Haruka, em compensação, pusera os pés na loja e um vendedor extremamente solícito se materializara diante dela.

Em segundo lugar, Haruka era a mestra do poker face em pessoa. Daisuke sabia que ela não estava entendendo nada do que o atendente dizia sobre memória RAM e câmera de novecentos e sessenta mil pixels e sincronização na nuvem. Ele mesmo acompanhava com dificuldade a lista de supostas vantagens.

— E então, Daisuke? Você acha que esse modelo atende nossas necessidades?

Daisuke quis rir da expressão de alarme do atendente. Provavelmente só fora capaz de notar o momento de susto por conta dos reflexos vampiros. O homem definitivamente não esperava que a opinião de Daisuke fosse importante para o resultado da transação.

Infelizmente, a resposta da pergunta de Haruka era um pouco complicada. Objetivamente a resposta era “sim”: qualquer um dos modelos top de linha que o atendente apresentara até agora era mais do que suficiente para fazer cinco vezes mais do que o que Daisuke jamais precisara em sua vida. Não podia afirmar que Haruka nunca tinha tido um celular, mas ela com certeza estava há mais de vinte anos sem um, e muita coisa mudara desde então. Era improvável que da noite pro dia ela precisasse de funções mais complexas do que mensagem de texto, ligação em vídeo e joguinho de paciência. Ou mahjong. Daisuke jurava que tinha visto peças reais de mahjong no quarto de Haruka.

A dificuldade de responder a pergunta vinha, então, do fato de que ele era pobre. Não conseguia se conformar com o valor que Haruka estava prestes a gastar não apenas em um, mas em dois celulares. Para gastar um valor assim, precisava ter certeza de que o celular em questão era a prova de balas, conseguia sediar um servidor de internet e ainda dobrava como desfibrilador em caso de emergências. De acordo com o vendedor era quase isso, mas até aí, era um vendedor. É claro que ele diria que o produto tinha funcionalidades maravilhosas e garantia excelente.

Viu a vampira começar a parecer impaciente. Não tinha certeza se ela aceitaria a explicação dele sobre sua incapacidade de tomar uma decisão, então procurou uma resposta mais segura.

— Você disse que queria pesquisar. Acho que ainda não visitamos lojas o suficiente para tomar uma decisão.

Haruka pareceu satisfeita, o vendedor mal foi capaz de esconder a decepção, e poucos minutos depois eles estavam novamente no carro.

— Eu achei que você ia querer encerrar as compras mais cedo para não termos que passar tanto tempo no sol. — ela disse, assim que Daisuke deu a partida.

— Seria ótimo, mas… — ele suspirou — Haruka, você faz questão de ter “o melhor” celular, ou qualquer um que seja muito bom serve? Porque todos os que nós vimos lá eram muito bons. Tudo depende do que você quer.

Suspeitava que a vampira não sabia o que queria, e realmente Haruka passou vários minutos em silêncio enquanto Daisuke dirigia para outra loja na zona livre.

Finalmente ela disse:

— Eu quero um aparelho que combine comigo.

Daisuke assentiu pelo retrovisor, esperando que ela desenvolvesse melhor a ideia.

— Eu não quero um daqueles retângulos pretos sem personalidade que o meu irmão usa.

Por um instante Daisuke pensou em mencionar capinhas coloridas de celular, mas parou. Nunca via executivos e pessoas importantes usando capinhas, muito menos coloridas. Não aprecia o tipo de telefone que se levava à ópera.

— Talvez uma linha que tenha várias opções de cor, então?

— Acho que é um começo. — Haruka ainda não tinha terminado o raciocínio, mas não tinha dó de deixar Daisuke esperando. Na verdade, os pensamentos dela pareceram tomar outro rumo, pois quando ela tornou a falar o que perguntou foi:

— Afinal, o que aconteceu com o seu celular? Todos os terceira-classe brasileiros já vieram com um, mas você e os policiais que vieram junto não.

Os policiais que vieram junto.

Tinha alguma coisa particularmente detestável no jeito como Haruka falava de uma armadilha que levara dez policiais à sua morte e oito ao vampirismo forçado como se fosse uma promoção que viesse com brindes. Mais uma vez se pegou pensando nos outros policiais que haviam sido transformados. Ele, Nathalie, Moxley. Quem eram os outros cinco? Devia ter perguntado a Charlotte.

— Procedimento padrão da polícia. — ele respondeu um pouco bruscamente, tanto porque Haruka não gostava quando ele demorava demais para responder, quanto porque se recusava a pensar em Charlotte.

Continuou:

— Todo mundo que tem que trancar o celular num armário durante o seu turno de patrulha. Quando é só uma volta de rotina pelo bairro a maioria do pessoal ignora, mas quando é uma operação maior todo mundo segue à risca. Ninguém quer um telefone vibrando quando você está tentando se aproximar dos vampiros sem ser notado. — “Ou que os vampiros encontrem as fotos da sua família”, mas como sempre não disse isso em voz alta porque enquanto pudesse evitar que Haruka o questionasse sobre a família dele, o faria sem pensar duas vezes. — Ou ficar com o celular no bolso durante uma luta intensa e quando terminar ele estar todo quebrado.

— Entendo.

Mais silêncio.

Na segunda loja Haruka mais uma vez ficou sentada no banco de trás até que Daisuke abrisse a porta para ela. Sair no sol foi igualmente doloroso, mas ele sentiu que havia suportado melhor. Ainda era uma loja de gente rica, e mais uma vez uma atendente se dirigiu diretamente para Haruka, ignorando Daisuke.

“Talvez seja a postura.”

Uma coisa que sempre havia reparado em Haruka é que mesmo que nunca se sentasse numa cadeira com apoio, suas costas estavam sempre retas. Coisa de vampiro? Coisa de família japonesa tradicional? Sua bachan vivia dizendo pra ele e Yuusuke sentarem direito. Aprumou a postura.

Quando deu por si, Haruka já havia dito à vendedora que queria um modelo com opções de cor, e a vendedora sugerira capinhas coloridas. Pela cara de Haruka, era uma coisa boa que não tivesse sido Daisuke a sugerir isso. Um pouco encabulada com o desdém da cliente, a vendedora murmurou um “eu sou nova aqui, vou chamar meu supervisor, ele conhece mais produtos”. A primeira parte era mentira, mas Daisuke torcia para que a segunda fosse verdade. Quanto antes encontrassem o que Haruka queria, antes acabaria o tormento de andar no sol. O mundo de dia tinha as cores estouradas, brilho no máximo.

— Com licença. Eu ouvi vocês conversando, e eu acho que sei de um celular que parece ser o que você quer. — o outro único cliente da loja era pouco mais que um adolescente, e estivera pesquisando no celular a diferença entre alguns modelos. Outro vendedor o vigiava, pronto para ir até ele a qualquer momento caso ele manifestasse o desejo de ser atendido por um ser humano.

Haruka o examinou de alto a baixo, mas tão rapidamente que Daisuke duvidava que o humano tivesse notado. Ela indicou que ele prosseguisse.

— Durante a renascença da Blackberry eles estavam fazendo de tudo pra marca voltar a ser símbolo de status. Pra quem precisava da parte de segurança da informação é claro que eles eram a escolha óbvia, mas pra o usuário comum… — o rapaz era uma espécie de nerd tecnológico, então a explicação se alongou um pouco, passando por produtos a preços populares até parcerias com joalherias que criaram monstruosidades como telefones revestidos de ouro branco — …o que eu na verdade acho ridículo, mas tem doido pra tudo, né?

— Pois é. — Haruka concordou, a pura imagem da simpatia e inocência. — Mas então, qual telefone você estava me recomendando? O telefone ridículo de ouro branco?

O garoto corou, e a movimentação do sangue para o rosto do rapaz foi como uma borrifada de perfume. Haruka sorriu, e Daisuke ainda se lembrava o suficiente de como era ser humano para estremecer com aquele sorriso. O jovem, Deus o tenha, não notou nada.

— Ah, é. Não, não esse. Apesar de que se você quiser comprar um telefone de ouro branco, quem sou eu pra julgar. Mas não. Eles fizeram uma coleção com ê designer Pam Pangilinan. — pausa para verificar se seus interlocutores reconheciam o nome. — Elu faz uns designs meio… — o vocabulário começou a faltar. Claramente o garoto entendia de tecnologia, não de artes. — Uns padrões geométricos e hachuras? Uma coisa meio… Arte decó!

Foi até fofo acompanhar o momento de epifania dele.

— Eu adoro arte decó! — Haruka exclamou, sutilmente se aproximando dele. O olhar do rapaz se tornou um tanto vago. — Daisuke, será que você pode manter os atendentes ocupados um instante?

Foi um daqueles momentos de adrenalina onde Daisuke tinha certeza que, se fosse humano, o sangue estaria martelando nos ouvidos. Ficou pensando se Haruka realmente gostava de arte decó — ela tinha mais cara de arte nouveau — e percebeu que estava divagando para não encarar a verdadeira natureza da tarefa que recebera.

Estava respondida a pergunta se Haruka caçava.

Eu sinto muito se a saga da compra do celular está longa. Acreditem, era pior no rascunho. Não percam a próxima semana de Técnicas Sanguíneas, na qual percebemos que aplicativos de celular são bastante pessoais.

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