Técnicas Sanguíneas - Capítulo 15

No qual Daisuke usa um cartão de crédito e um relógio analógico.

Tempo estimado de leitura: 12 minutos

Semana passada eu fiquei doente e acabei não conseguindo fazer o que precisava para lançar “Urbânides”. Estou melhor, mas por causa da correria vou acabar adiando a publicação do conto para sexta-feira dia 15/03.

Aliás, falando em publicação: pra vocês é interessante ter um e-book de Técnicas Sanguíneas quando tudo isso acabar? Vocês preferem um e-book para cada divisão da história, ou volume único? Vocês podem responder nos comentários da versão on-line, ou respondendo o e-mail mesmo.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 15

No qual Daisuke usa um cartão de crédito e um relógio analógico.

Mantenha-se disponível.

Daisuke queria revirar os olhos e retomar seus passeios noturnos como se nada tivesse acontecido, mas acabara de pedir um favor a Haruka e estava tão perto de conseguir o seu Objetivo 1 de 3 que não valia a pena testar a paciência dela. Quando saía fazia rondas breves, se mantendo numa distância de cinco a dez minutos da mansão. Na primeira noite que se manteve tão perto pegou Yukio de surpresa: o segunda-classe de Akihito ainda estava dentro da propriedade quando Daisuke voltou, e se cruzaram no muro.

“Achei.” Daisuke fez um esforço para manter a expressão neutra. Sabia que o encontro não contava como vitória no seu jogo de esconde-esconde noturno, porque Yukio ainda nem tinha começado a se esconder, mas o sentimento de triunfo era inevitável. Achou que seria interessante confundir seu perseguidor alternando caminhadas longas e curtas, mas desistiu. Haruka o queria disponível. Em vez disso, Daisuke voltou a frequentar a academia no porão.

Algumas mudanças estavam acontecendo em Daisuke e na sua dinâmica com os subordinados de Akihito. Agora que se alimentava melhor, podia aumentar a intensidade dos exercícios. O nível de treino que fazia enquanto era policial agora era fácil pra ele, então podia testar seus limites e descobrir a partir de que ponto os exercícios começavam a consumir sua reserva mágica de sangue. A outra mudança era que os terceira-classe começavam a sair do seu caminho. Cada vez menos percebia grupos falando sobre ele onde podia ouvi-los, e quando decidia usar um aparelho diferente não era incomum o vampiro que o utilizava interromper sua série de exercícios para liberar o aparelho para Daisuke. O fato lhe causava muitos sentimentos mistos. Por um lado, gostava de poder se distrair com os exercícios sem ser forçado a interagir com os sanguessugas. Por outro lado, a deferência o fazia se sentir desconfortável. Como se ele fosse um valentão ou um folgado que esperava os mais fracos se acomodarem às suas necessidades. Nunca via os segunda-classe de Akihito na academia. Não sabia se eles simplesmente não frequentavam o local, ou se era uma decisão intencional de não cruzar caminhos com ele.

Conforme as noites iam passando, Daisuke se sentia cada vez mais claustrofóbico. Mesmo ao ar livre, a proximidade do quartel general de Akihito era sufocante. Ele pensou em desenterrar o pouco japonês que usara com a avó na infância e tentar se comunicar com as senhorinhas na mansão, mas hesitou. Em primeiro lugar, tinha medo de se lembrar errado. Em segundo lugar, japonês tinha algumas peculiaridades sobre formalidade, e não queria ser uma pessoa sem noção tratando as funcionárias com intimidade demais.

— A srta. Haruka mandou te chamar.

Como sempre, foi Yu Jun que transmitiu o recado. Com Daisuke passando mais tempo na mansão, acabavam se cruzando mais. Ela não lhe lançava mais olhares furiosos, mas o modo como sua expressão ficava neutra certamente não era natural.

— Obrigado, Yu Jun.

Prometeu a si mesmo que assim que fosse seguro contaria a ela o que acontecera com Hana.

“Mas o que exatamente é seguro?”

Bateu à porta de Haruka.

— Entre, Daisuke.

O quarto de Haruka estava o caos. Aparentemente todas as peças de roupas que a vampira possuía estavam fora dos respectivos armários — Daisuke supunha que ela tinha vários, as paredes de papel podiam se abrir para um closet enorme — e empilhadas sobre as almofadas e instrumentos musicais. Onde as pilhas não eram estáveis as roupas haviam se derramado para o chão, e Haruka não parecia se importar.

Daisuke sentiu um aperto no coração. Aquele nível de bagunça era exatamente o tipo de cenário que faria sua mãe dizer “Meu Deus, o que aconteceu aqui? Parece que passou um furacão!” e pensar em sua mãe ainda enchia Daisuke de melancolia.

Aqui. — Haruka jogou para ele chaves de carro. — Nós vamos levar o Mitsubishi prateado.

Ele apanhou as chaves, os reflexos de vampiro vinham a calhar nessas horas. Um cantinho minúsculo de seu cérebro achou interessante o fato de terem um carro prateado: até agora sempre que levara Haruka a um dos seus compromissos noturnos haviam ido em carros pretos. E então finalmente seu olhar focou em Haruka.

Pela primeira vez em mais de um ano ela não estava nem em um vestido de festa preto, nem em um kimono vermelho. Usando uma saia comprida numa cor clara indistinta e uma blusa azul-marinho sem mangas, a vampira parecia outra pessoa. O efeito lembrou Daisuke de Akihito se infiltrando no Stravo’s. Tudo bem que o vampiro também havia usado uma generosa camada de Influência para evitar ser notado, mas não estar nem de terno nem de kimono ajudara bastante.

— Você não me pediu dinheiro durante a semana. — Haruka falou, fazendo-o voltar ao presente.

Ele não entendeu.

— Você comprou os óculos escuros como eu falei?

— Não… — ele havia esquecido completamente.

Haruka localizou rapidamente sua bolsa de mão em meio à bagunça. Entregou a Daisuke um cartão de crédito.

— Vá comprar um, mas volte rápido. Nós iremos hoje, e você deve descansar.

***

Daisuke pegou um óculos barato em uma loja de conveniência 24 horas, mas se as lojas de acessórios de marca estivessem abertas ele teria se sentido tentado. O cartão de crédito que Haruka lhe entregara era um cartão corporativo, e o ex-caçador não tinha dúvidas de que a “empresa” era a pessoa jurídica que Akihito usava para administrar seus bens e pagar seus funcionários.

Mais uma vez pensou em como os vampiros faziam para manter suas operações. Hana havia mencionado que os humanos que acompanhavam Akihito às vezes tinham suas próprias vidas, pequenos negócios que tocavam. Talvez o vampiro fosse sócio nessas empresas. Akihito lia vários jornais de economia, ele tinha cara de quem fazia investimentos. Ainda assim, pareciam quantidades indecentes de dinheiro: um terreno enorme no bairro das mansões, uma casa erguida do zero que com certeza contara com um projeto arquitetônico especial, água, eletricidade, carros e todos os impostos e manutenção relacionados, funcionários… Até onde a polícia sabia, os outros puro-sangues não tinham tudo isso — ou pelo menos não exibiam seus recursos materiais com a exuberância de Akihito. Agonglô sempre ia à ópera, e tinha um carro. Presumivelmente um edifício com garagem onde esse carro pudesse ficar estacionado durante o dia. Constantino tinha seu “escritório”. Não havia ouvido muita coisa sobre Weiss ou Wilson.

Daisuke odiava a perspectiva de ter que pedir dinheiro para Haruka para atender suas necessidades — roupas, materiais de estudo e pesquisa, entretenimento — mas não tinha mais documentos, estava restrito às horas noturnas e aos caprichos da vampira. Trabalhar estava fora de questão, e a única outra forma de conseguir dinheiro era usar as habilidades sobre-humanas para cometer pequenos roubos. A ideia o revoltava. Por outro lado, estourar o limite do cartão de Akihito parecia o tipo de vingança mesquinha que ele poderia praticar mais ou menos impune. Haruka o mandara comprar óculos escuros. Ela não lhe dera um teto de gastos.

Claro que Haruka usar um cartão corporativo de Akihito levantava uma série de outras questões, mas Daisuke guardou essas para outra hora.

Quando voltou à mansão, tentou se recolher. De certa forma, enquanto vampiro nunca havia ido dormir por vontade própria: o nascer do sol induzia nele uma sonolência sobrenatural, e ele sempre havia usado essa fraqueza fisiológica como toque de recolher. Alguém havia deixado em seu quarto, provavelmente por ordem de Haruka, um despertador analógico.

— Nem pra ser um rádio relógio…

Sua pior preocupação era não ter a opção de deixar uma dúzia de alarmes a cinco minutos um do outro. Quando era vivo não fazia isso. Um toque, no máximo um segundo toque após a soneca de quinze minutos, era o suficiente. Mas quando era vivo tinha um sono normal, não praticamente um coma induzido. Em um ano como vampiro, jamais acordara no meio do dia, e as únicas vezes em que sentia o sono leve era quando um dos seus esconderijos diurnos parecia vulnerável demais.

Se deitou no seu futon e tentou relaxar. O corpo vampiro parecia ser avesso à ideia.

“Um pouco pior que uma insônia comum”, Daisuke decidiu. Não era raro se sentir energético demais para dormir, mas tinha experiência em persistir até o sono chegar. Quase sempre funcionava.

Só percebeu que estava dormindo quando tentaram acordá-lo.

— Senhor Daisuke? — ele não teria ouvido a voz se não fosse pela mudança na luz. Seu quarto não tinha janelas, mas quando a porta do corredor estava aberta a luminosidade difusa do corredor era o suficiente para afetar o descanso de Daisuke.

— Senhor Daisuke? O seu despertador tocou mas o senhor não se levantou.

A voz era familiar, mas ao mesmo tempo não.

— Senhor Daisuke. — dessa vez, a mulher o cutucou com um cabo de madeira. Daisuke acordou com um salto, agarrando com violência o cabo do que ele descobriu ser uma vassoura.

Uma senhora de meia-idade olhou pra ele, a expressão ao mesmo tempo alarmada pelo movimento repentino, mas satisfeita porque as coisas haviam se desenrolado exatamente como ela esperava. Daisuke olhou pra ela.

— Desculpa. Obrigado por me acordar.

— A senhorita Haruka mandou eu vir.

Ele assentiu. A mulher não se moveu.

“Pra você não voltar a dormir, seu idiota.” Daisuke tinha um péssimo humor de manhã, mas pelo menos continha o pior da incivilidade dentro da própria cabeça. Ficou de pé.

— Você fala português. — disse, se xingando mentalmente pelo comentário criativo e inteligente.

— A senhorita Haruka disse que o senhor não fala japonês. — as frases dela eram abruptas, com pausas um pouco artificiais. O português dela era bom, mas faltava confiança.

Ele assentiu e abriu um armário. Na noite anterior havia decidido o que vestir, mas percebeu que devia ter deixado as roupas separadas, pois não se lembrava mais. Depois de alguns minutos olhando grogue para o armário — a criada ainda o vigiava — lembrou-se da recomendação de Haruka: expor o menos de pele possível.

Por sorte não sentia mais calor ou frio, exceto em circunstâncias extremas. Pegou a única jaqueta que possuía. Virou-se para a empregada na porta.

— Eu ainda tenho tempo de tomar um banho?

— Se o senhor for bem rápido.

Daisuke assentiu, e finalmente a criada fez menção de deixá-lo. Ele a impediu com uma pergunta repentina.

— Qual o nome da senhora?

— Eun-ji Li.

Nome coreano.

— Eu nunca vi a senhora de noite, mas você parece familiar.

— Eu só trabalho de dia. Talvez você tenha visto a Yu Jun. Ela trabalha de noite.

E foi assim que Daisuke entendeu.

— A senhora é a mãe da Yu Jun. — na surpresa, a conclusão acabou soando mais como um questionamento, fazendo com que Eun-ji respondesse:

— Sim.

Daisuke não percebia nenhuma hostilidade ou estranhamento vindo da senhora coreana, mas não tinha como deixar de se perguntar se Eun-ji havia sido próxima de Hana, como reagira ao seu desaparecimento e se Yu Jun comentara com ela sobre o envolvimento de Daisuke no processo. Engoliu em seco e usou “é um prazer conhecê-la” à guisa de despedida. Pegou suas roupas e se encaminhou para o banheiro.

Não conseguiu dar um passo. As janelas do corredor não eram mais do que telas de papel, mais opacas inclusive do que seriam em uma residência humana, mas a luz que passava já era agressiva para Daisuke. Se sentindo um idiota, ele voltou e colocou óculos escuros para andar pela casa.

Depois do banho se sentiu melhor, e 13:55 bateu à porta de Haruka para informar:

— Estou indo pegar o carro.

A garagem de Akihito era outra estrutura subterrânea. A casa era bem menos tradicional por dentro do que por fora.

Era uma coisa boa que Haruka não entrasse no carro na garagem com ele, porque quando Daisuke tirou o carro do subterrâneo, saindo por um prédio na rua de trás da mansão, o ex-caçador soltou um palavrão. Ele estava dentro do carro, que tinha vidros escurecidos, usando óculos escuros e roupas de manga comprida, mas o toque do sol ainda era como encostar em um ferro quente.

Depois que o choque passou a sensação diminuiu um pouco. Não o suficiente para que Daisuke formulasse pensamentos coerentes, mas pelo menos conseguiu dirigir. Pensou que estava fazendo o equivalente encostar num ferro quente e não soltar. É claro que a dor diminuía: as terminações nervosas estavam morrendo.

Parou na frente dos portões, que se abriram. Será que durante o dia eles eram tão bem guardados quanto durante a noite? E então Haruka saiu da mansão. Daisuke não conseguia ver a expressão dela enquanto cruzava o jardim — percebeu que sua visão estava extremamente debilitada — mas ela não tinha a postura de uma pessoa se retorcendo de dor ou tentando andar o mais rápido possível para fugir dos raios desconfortáveis do sol. A luz a incomodava menos, ou ela apenas fingia melhor?

Haruka parou na calçada. Ela também usava óculos escuros, então era difícil ter certeza da expressão dela. Ficaram em silêncio por alguns instantes.

Daisuke queria tanto que ela entrasse logo no carro e que eles partissem e resolvessem a questão do celular pra que ele pudesse finalmente sair do Sol…

— Daisuke, o que você está esperando? Abra a porta para mim.

Sem um batimento cardíaco o medo fazia Daisuke reparar em outros sons: carros na rua, pássaros cantando, coisas que normalmente não ouvia de noite. Engoliu em seco.

“Claro. Sempre antiquada. Fã de clássicos.”

Ele respirou fundo meia dúzia de vezes antes de abrir a porta de supetão para acabar logo com isso.

Daisuke estava essencialmente pegando fogo. Ou pelo menos era assim que se sentia. Para conter o grito acabou mordendo a língua, e reparar no gosto do sangue e perceber o momento em que a magia vampira começou a reparar o estrago. Uma cura tão minúscula o estava exaurindo muito mais rápido do que deveria. Bem que Haruka havia dito que ele se sentiria melhor se tivesse ido bem alimentado.

Abriu a porta para Haruka. Ele estava distraído demais com a própria dor para notar que ela o observava atentamente.

— Certo. — tentou recuperar o fio do pensamento depois que tornou a entrar no carro. — Pra onde vamos?

Fiquem atentos, pois na semana que vem descobrimos que Haruka caça.

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