Técnicas Sanguíneas - Capítulo 32 (Final da temporada)

No qual Daisuke passa dos limites

Tempo estimado de leitura: 19 minutos

Depois de uma conversa emotiva, Daisuke e Nathalie se preparam para a ação.

Se você precisou pular o capítulo anterior, aqui vão os tópicos mais importantes:

  • Daisuke revela a Nathalie que vampiros podem sair durante o dia, e os dois marcam de se encontrar no Forró do Arco, um local/evento que à noite é vigiado por caçadores, mas que deve ser seguro de dia.

  • No início da conversa Daisuke relata a história que Haruka contou sobre Alana: ela era humana, e foi atacada por Akihito. A experiência de quase morte despertou seus poderes vampiros, congelando Akihito e permitindo que ela escapasse. Akihito a odeia desde então, e Haruka buscou fazer amizade com ela apenas para contrariá-lo.

  • Nathalie não se conforma que Alana tenha sido humana e ainda trate tão mal os vampiros transformados. Ela conta sobre dois ex-policiais mortos por Alana, e sobre a violência que sofreu.

  • A experiência a leva a chorar, e assim ela e Daisuke descobrem que 1) vampiros podem chorar, e 2) depois que as lágrimas acabam começa a sair sangue.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual. (O pior já passou, mas ainda em negrito porque o assunto ainda é mencionado)

Capítulo 32

No qual Daisuke passa dos limites.

— Isso foi muito embaraçoso. — Nathalie murmurou, enquanto Daisuke passava para ela uma caixa de lenços umedecidos que acabara de comprar da farmácia.

— Foi educativo. Eu não sabia que a gente chorava, e muito menos o que acontecia se passasse do ponto.

— E se agora eu estiver cheirando sangue e a gente tiver saído no sol por nada?

— Foi por isso que eu peguei os lencinhos perfumados. Como você está se sentindo?

— Parece que o poder do sangue está tentando curar alguma coisa na minha cara. Me lembra quando eu tive sinusite.

— Você deve estar com tanta sede.

O comentário teve o poder de deixar a atmosfera mais sóbria. Daisuke olhou para Nathalie, tentando medir a reação dela.

— Como você está? Sobre o resto?

Ela pensou por vários instantes.

— Eu ainda tenho medo de morrer se eu resistir. Mas eu também sinto raiva? E de alguma forma isso faz eu me sentir melhor.

— Eu não julgo. Definitivamente parece um mecanismo de compensação válido.

— E eu me sinto feliz de ter um amigo.

Daisuke sorriu e estendeu uma mão para ela. Ela apertou a mão dele brevemente antes de soltar.

— O resto da gangue não é muito unida? — Daisuke perguntou, mesmo sabendo que Nathalie não podia falar deles. Ela travou três vezes antes de encontrar outro ângulo:

— Eu acabo ficando isolada. É como se tivesse um alvo pintado nas minhas costas.

Parecia fazer bem pra ela encontrar essas brechas no sangue primário, encontrar alguma forma de recuperar sua autonomia. Ficaram em silêncio por algum tempo, mas já estavam se locomovendo na direção do território de Wilson.

— Daisuke?

— Oi.

— Quando a gente for brigar com os caras do Wilson… a gente vai acabar mordendo eles.

Daisuke na verdade pretendia evitar isso, pois não sabia se precisava engolir sangue para passar mal, ou se bastava ele ter contato com sua boca, mas sabia pra onde Nathalie estava indo com a pergunta.

— Se conseguirmos pegar as pistolas primeiros a gente pode só atirar. — ele disse sem convicção, e Nathalie sacudiu a cabeça. Teriam que atacar com unhas e dentes antes de conseguir as armas. Daisuke tentou outra abordagem:

— Não tem conotação sexual se eles não estão dando sangue pra gente.

— Mas a gente vai estar tomando à força. Quer dizer… eu provavelmente vou. Eu não queria, mas…

Mas ela estava sedenta.

— Eu ainda não acho que seja a mesma coisa. Pra começar, a gente não está numa posição superioridade. Nenhum deles está ligado ao nosso sangue, e eles tem armas. Assim... a gente ainda está atacando eles com intenção de matar e roubar as armas deles, e isso é um BO meu que no fim das contas ainda conta como violência gratuita. — não tinha contado a Nathalie sobre os favores que devia a Constantino. Não fazia diferença, podia facilmente ser uma missão passada por Haruka — Então se você quiser pular fora pela parte do latrocínio, eu super entendo. Mas o que a gente vai fazer aqui não é nada parecido com o que a Alana fez com você.

Nathalie ficou em silêncio até chegarem na rua que marcava o início do território de Constantino.

— Você acha ruim se eu disser que eu gosto da ideia de violência gratuita? Se for contra vampiros aleatórios?

— Bom, você disse que estava com raiva, e eu disse que achava esse um mecanismo válido. Fora que vampiro nem é gente.

A brincadeira conseguiu arrancar dela um sorrisinho.

***

Daisuke e Nathalie nunca haviam sido parceiros na polícia, mas haviam participado juntos de algumas operações. Foi fácil se coordenarem como uma dupla de caçadores.

Avançaram uns dois quarteirões pra dentro do território de Wilson e foram andando ao longo da fronteira na direção da zona livre, esperando encontrar algum dos vampiros colocados de vigia. Daisuke esperava que os vigias armados não ficassem só na fronteira com Constantino, pois teriam que se embrenhar demais no território norte para armar uma emboscada lá.

Pelo menos a estratégia de andar no sol havia funcionado: meia dúzia de vampiros desarmados passaram por seus esconderijos sem notá-los.

Já eram mais de nove da noite quando avistaram um grupo de três terceira-classes que parecia estar patrulhando. Ou melhor: dois pareciam estar partulhando, ambos armados e um deles com um rádio no ouvido. O outro parecia estar só acompanhando, conversando empolgado sobre um assunto qualquer. Daisuke e Nathalie se entreolharam. Ela indicou que lidaria com o vampiro do rádio, e Daisuke assentiu. Ergueu os dedos numa contagem de três.

Daisuke e Nathalie dispararam, flanqueando o trio por lado opostos. O alvo de Daisuke só o notou quando Daisuke estava quase tocando nele. O vampiro da gangue de Wilson tentou contra-atacar, mas num instante Daisuke torceu seu pescoço. Não era o suficiente para matar um vampiro, mas conseguia distrai-lo por alguns segundos, durante os quais Daisuke o desarmou e atirou no meio da testa. Quando se virou para ver como estava a luta do lado de Nathalie, encontrou uma cabeça congelada separada dois metros do corpo. Ela havia usado os poderes de gelo para desabilitar o rádio e reduzir a mobilidade do vampiro, mas seu erro fora que isso tornava difícil tirar a pistola dos dedos rígidos do terceira-classe. O último do trio estava encaminhado para atacá-la, e ela parecia em dúvida entre sacar a pistola mais rápido ou tentar lidar com esse na mão. Daisuke a livrou da dúvida atirando na nuca dele. Claramente os reflexos vampiros faziam muito pela sua mira.

— No fim você não mordeu nenhum deles. — Daisuke comentou enquanto Nathalie guardava a arma na cintura.

— Ainda. — ela se abaixou sobre o último a ser derrubado. Tentou uma mordida no pescoço e cuspiu. — Dá pra sentir o gosto de balas amaldiçoadas.

— Caraca. — mas Nathalie não retribuiu o comentário, pois havia se debruçado sobre o cadáver decapitado e mordia o pescoço repetidamente, procurando um ângulo mais confortável e tentando forçar o sangue congelado a sair. Reparou que o cabelo dela estava quase todo preto de novo, só uma manchinha do tamanho de uma bola de ping-pong permanecia próxima da nuca.

— Nat? Não sei se essa informação vai te interessar, mas eu descobri que cabelo de vampiro cresce.

Não tiveram tempo de continuar essa conversa, porque o vento trouxe o cheiro de vampiros se aproximando de várias direções. Mesmo os terceira-classes não tendo tido tempo de passar um aviso pelo rádio, de alguma forma a gangue de Wilson fora avisada.

Daisuke e Nathalie correram.

***

Foi só quando se separou de Nathalie e entrou no território de Constantino que Daisuke percebeu que ela ficara com uma das pistolas. Bom, parecia justo. De qualquer forma Constantino só pedira por uma.

“Tomara que ela pelo menos atire na Alana.”

***

Daisuke precisou pedir para se alimentar três noites seguidas antes de sentir que estava plenamente recuperado da saída diurna e da luta. Quando Kim o viu na primeira noite, desarrumado e respingado do sangue de outras pessoas, o segunda-classe ficou tão chocado que se dirigiu a Daisuke — um evento raríssimo.

— O que você andou fazendo?

— Haruka sabe, então não é dá sua conta.

Haruka sorriu. Achava divertido vê-los brigar.

Na segunda noite Kim estava agitado. Por mais que gostasse de vê-lo perder a compostura, Daisuke estranhou. Não havia nenhum estímulo externo para deixá-lo assim, e alguma coisa na expressão do outro lhe parecia familiar.

Na terceira noite Daisuke acabou perdendo o interesse em Kim, pois Akihito apareceu no quarto de Haruka.

— Você sabe que eu odeio quando você se fecha no seu quarto assim. — ele disse, e trazia uma bandeja de chá.

— Você se preocupa demais, Aki. — Haruka sorriu, e aceitou a xícara que ele lhe oferecia.

— Agonglô esteve aqui esses dias, ele perguntou de você.

Haruka revirou os olhos e respondeu alguma coisa em japonês, mas o tom dela era leve. Alguma discussão antiga e familiar entre os gêmeos. Ver os dois vampiros assim lhe causava lembranças dolorosas, então Daisuke tentou prestar atenção em qualquer outra coisa.

Como o fato de que Akihito encheu a xíacra de Haruka três vezes durante o tempo que levou para beber uma só.

***

Daisuke evitou falar sobre o assunto por tanto tempo quanto possível, mas agora que tinha suas suspeitas, não conseguia segurá-las para si.

— Haruka, posso falar com você?

— Diga, Daisuke.

Ele não perdeu tempo olhando de esguelha para o canto onde Kim estava ajoelhado.

— Em particular.

Haruka, em compensação, olhou para o outro vampiro, com se calculasse riscos.

— Kim, suma da minha vista por uns quinze minutos. Não fique enrolando no meu corredor. Apenas áreas internas da casa.

— Sim, senhorita.

Se Kim estava proibido de visitar até o jardim, parecia uma questão de tempo até ele começar a subir nas paredes de tédio. Após um convite de Haruka Daisuke se sentou e foi direto ao ponto.

— Haruka, por que você bebe chá? Eu bebo coisas por hábito de quando eu era humano, mas por que você bebe chá?

A expressão de Haruka mostrava o quanto ela achava a pergunta estranha, e motivo insuficiente para tirar Kim do quarto, mas ela pareceu decidir que queria ver aonde Daisuke estava indo com isso.

— Chá é um aspecto cultural muito importante no Japão.

— Certo. Sakê também? E a sua família, vocês bebiam juntos? Chá, sakê, não importa… em celebrações? — não conhecia muitas celebrações japonesas, e definitivamente não o suficiente para saber quais existiam desde a época de Haruka e quais eram associadas ao consumo de alimentos ou bebidas específicos.

— Na verdade não… era mais quando os servos tinham algo a celebrar. O nascimento de uma criança saudável, uma colheita… eles faziam uma festa, nós aparecíamos para honrá-los com a nossa presença, eles ofereciam alguma coisa porque mesmo para eles é difícil aceitar a ideia de que vampiros só bebem sangue. Por que isso é relevante, Daisuke?

— Então quando você e o seu irmão começaram a tomar chá sozinhos?

Haruka olhou para ele confusa.

— No escritório dele, quando recuperamos o celular do Kim. Ele te ofereceu chá.

— Ele sabe que eu aprecio o gosto. Ele prefere álcool, eu prefiro chá.

— Mas quando vocês começaram?

Um pouco de malabarismo mental para peneirar as lembranças.

— Acho que em Hong Kong ele pegou o hábito de beber com humanos com quem fazia negócios, e nós começamos a fazer celebrações nossas.

Foi a vez de Daisuke parar e tentar recalcular.

— Só celebrações? — como Haruka não respondeu, ele deu exemplos adicionais — Com que frequência ele te oferece chá quando vocês estão tendo uma discussão? Sei lá, ele não apareceu com uma garrafa de sakê especial para vocês tomarem juntos antes dele ir para Hong Kong?

— Daisuke, do que você está falando?

— Eu estou falando que da única vez que um vampiro me ofereceu uma bebida, ela estava batizada com sangue.

***

Haruka olhou para seu segunda-classe como se ele tivesse crescido uma cabeça adicional. Era perturbador como ele estava certo sobre fazerem as pazes após uma briga tomando chá juntos, e ainda mais perturbador que ele tivesse adivinhado aquela noite quando Akihito parecia determinado a partir, mesmo sem Haruka, e decidira compartilhar uma bebida com ela porque passariam um bom tempo sem se ver. Na metade da garrafa de sakê ele admitiu que não estava lidando bem com a ideia da separação.

— Por favor, maninha, eu imploro! Kyoto já foi ruim o bastante, mas Hong Kong é ainda mais longe. Eu preciso de pelo menos uma pessoa que me conheça pra me manter são!

E ela havia cedido.

Mas a teoria de Daisuke não fazia sentido e, voltando ao presente, ela explicou porque:

— Akihito não tem uma técnica sanguínea.

— Como você sabe?

— Porque quando ele dá o sangue dele para as pessoas, nada acontece!

Normalmente ela apreciava quando Daisuke se interessava pela vida dela e assuntos vampiros, mas a discussão daquela noite estava ficando ridícula.

Daisuke balançou a cabeça.

— Não é porque ninguém ficou com cabelo azul ou adquiriu uma alergia alimentícia extrema que nada aconteceu. Eu e você sabemos que o Wilson tem alguma técnica, mas o Akihito nunca tinha suspeitado disso, e muito menos descobriu do que se trata.

Haruka percebeu, com um sentimento de culpa, que não informara o irmão sobre a descoberta. No dia que Daisuke lhe contara havia parecido maravilhoso: saber de alguma que Akihito não sabia! Mas agora que a novidade do fato havia passado, parecia mesquinho continuar escondendo isso dele.

— Daisuke, meu irmão não tem uma habilidade sanguínea secreta. E mesmo que ele tivesse, ele jamais a usaria em mim.

— Ele já usou! É por isso que você deixa ele controlar a sua vida!

— Basta.

O tom de Haruka foi final, mas Daisuke estava envolvido demais na própria teoria para perceber.

— Estou dizendo, “beber para comemorar um acordo” é só uma desculpa pra ele conseguir algum tipo de controle extra sobre as pessoas. Eu ainda não sei que tipo, mas…

O tapa de Haruka o mandou voando até a parede. Os olhos dele se arregalaram, e a vampira sabia que ele estava se lembrando da noite em que fora punido.

Ela ainda estava decidindo se devia ou não repetir o feito, quando o barulho atraiu passadas apressadas pelo corredor.

— Maninha, você está bem?

— Eu estou, Aki. — ela respondeu, conforme ele entrava.

Daisuke se levantou devagar olhando de um puro-sangue para o outro. Haruka se dirigiu a ele.

— Você precisa se colocar no seu lugar, Daisuke. Você tem uma hora pra deixar a minha casa. Você está banido.

***

Haruka estava alterada, e com Akihito e Kim como testemunhas não haveria diálogo.

Daisuke não tinha uma mala para transportar seus poucos pertences, e os vampiros não lhe providenciariam uma. Ele partiu com apenas seu caderno e o carregador de celular enfiados nos bolsos.

E então Daisuke correu, porque aquele território pertencia a Akihito, e se dependesse do puro-sangue ele não sobreviveria para ver Haruka chamá-lo de volta.

FIM DA PARTE DOIS

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