Técnicas Sanguíneas - Capítulo 31

No qual Nathalie revela o abuso cometido por Alana. Contém menções explícitas a intimidade forçada.

Tempo estimado de leitura: 17 minutos

O capítulo de hoje é um momento doloroso. Fiquem especialmente atentos aos avisos de conteúdo.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. ATENÇÃO: Neste capítulo uma personagem conta sobre como sofreu abuso sexual. Ela menciona momentos de intimidade física forçada, sem descrições gráficas, mas ainda assim pode ser mais do que alguns leitores se sentem confortáveis. Também vale lembrar que as reações dos personagens não são “manuais de como agir” quando isso acontece com você ou uma pessoa próxima. Os personagens estão confusos e assustados, e impedidos de buscar ajuda pelas circunstâncias fantásticas da história. Essa parte só começa após o flashback da Alana, mas para aqueles que pularem o capítulo inteiro, semana que vem haverá uma lista dos tópicos mais importantes.

Capítulo 31

No qual Nathalie revela o abuso cometido por Alana.


Quando Nathalie informou a sua disponibilidade para a semana, Daisuke teve que tomar uma decisão. Vampirismo parecia vir com um instinto implícito de guardar segredos e manipular informações.

Daisuke

Você quer ir no Forró do Arco?

Nathalie

Você tá doido?

O DECEPA fica lá aos montes!

O Forró do Arco era mais um evento do que um local, surgido quando vários barzinhos na Praça do Arco — ou Arco da Praça, a contestação do nome do ponto turístico era parte da cultura local — haviam desistido de competir pela ocupação e poluição sonora da rua. Ficar aumentando o volume da sua música tentando afogar a dos vizinhos ficava insustentável depois de um certo ponto, então eles apenas concordaram em separar por cor qual mesa pertencia a qual bar e rachar as despesas de uma banda ao vivo, de forma que às sextas-feiras uma das ruinhas que saía da Praça do Arco ficava completamente fechada por um palco e uma multidão de mesinhas coloridas.

E um vampiro ou outro sempre tentava se aproveitar da multidão para beber despercebido de um parceiro incauto, razão pela qual sempre havia pelo menos uma dupla de caçadores de vampiros designados para vigiar a área.

Daisuke

Não de dia.

Sair no sol é uma droga, mas segunda-classes aguentam.

E depois você passa a noite toda com cheiro de concreto queimado.

Praticamente invisível.

Nathalie

Você não pode estar falando sério.

Daisuke

Eu estou.

Se quiser, amanhã te mando uma selfie ao meio dia.

Nathalie

Faça isso e eu te pago uma Coca.

Então no dia seguinte Daisuke vestiu seu casaco de manga comprida e seus óculos escuros e tirou uma selfie desconfortável no jardim de Akihito. Ele queria dizer que tirara uma selfie “todo pleno”, mas o toque do sol em sua pele não contribuía.

Nathalie respondeu imediatamente com um palavrão.

Daisuke

O que você está fazendo acordada a essa hora?

Nathalie

Eu tenho sono leve.

Sempre me perguntei se dormindo num caixão eu teria um isolamento acústico melhor.

Ele riu

Daisuke

Eu vou te deixar dormir.

Amanhã, às 17.

No meio do verão ainda haveria sol o suficiente às 17 horas para esconder o cheiro dos dois.

***

— Eu não sei como você aguenta. — Nathalie desabou na cadeira em frente a de Daisuke. Ele havia escolhido uma mesa na sombra, pelo que ela era grata.

— Coisas que a Haruka me faz fazer, mas que acabam sendo úteis.

Isso deixou a vampira curiosa, mas ele não forneceu informações adicionais. Em vez disso ele parecia analisar o rosto dela.

— Você parece melhor.

— Eu… eu acho que estou.

Daisuke ofereceu uma mão e ela a tomou, o gesto bem menos esquisito do que no início dos encontros deles.

Nathalie pagou a Coca-cola prometida. Refrigerantes não desciam tão bem quanto líquidos não gaseificados, mas Daisuke não quis reclamar. A amiga parecia feliz de pagar alguma coisa para ele. Depois de conversarem sobre amenidades sobre alguns minutos — Daisuke contou que estudava japonês pelo celular e Nathalie havia se tornado uma telespectadora assídua de novelas — ela soltou, num tom falsamente casual:

— Então… a A… ela… costumava ser humana.

Daisuke achava que sabia o que ela estava pensando.

Repetiu a história com todos os detalhes que Haruka lhe dera.

***

Era um relato em terceira mão, na melhor das hipóteses.

Haruka não havia estado presente, mas Kim sim. Tudo acontecera pouco menos de dez anos atrás, logo que Akihito e Haruka haviam se instalado na mansão.

Naquela época Akihito saía para caçar quase toda noite. Não pelo alimento, mas pela afirmação de que o território, antes de Constantino e Agonglô, agora era dele. Quando subordinados das outras gangues tinham o infortúnio de cruzar caminhos com ele, Akihito os matava. Às vezes pessoalmente, às vezes delegando a tarefa a seus segunda-classes.

— Ele levava muito o Kim com ele. Ele era o braço direito do meu irmão antes do Aki me dar ele. — Haruka havia explicado — Foi assim que eu fiquei sabendo da Alana.

As rondas por seus novos domínios começavam a surtir o efeito desejado. Constantino havia retirado toda a sua prole, e colocado seus filhos mais fortes para guardar a nova fronteira. Agonglô ainda não havia entrado em contato, mas o número de segunda e terceira-classes desavisados que cruzava o caminho dele havia diminuído bastante.

Uma noite Akihito havia saído de casa, mas no meio do caminho decidiu que não havia trabalho a ser feito nas ruas, e que podia se divertir um pouco. Viu uma mulher descer num ponto de ônibus vazio e andar de forma determinada, agarrando sua sacola de lona como quem espera que algo ruim aconteça de repente. O vampiro achou que seria um desperdício se os medos dela não fossem concretizados. Com um aceno, Akihito dispensou Kim e Yukio, que foram para lados opostos criar um perímetro para que seu chefe não fosse interrompido durante a caça.

Eles souberam que a coisa havia dado errado quando a moça gritou. Akihito normalmente usaria Influência nela. Mesmo que ela o visse antes de ser mordida, deveria estar lânguida e confusa demais para gritar.

— Quando Aki a mordeu e começou a beber o sangue dela, ele congelou. O sangue nas veias dele virou gelo, e ele não conseguiu mais se mover. Isso deu pra Alana tempo de fugir, ela nem reparou no que estava acontecendo com ela. Kim falou que quando ele o Yukio a viram, o cabelo dela tinha crescido até a cintura e estava completamente azul. Isso acontece, às vezes. — ela havia acrescentado, vendo o olhar curioso de Daisuke — O corpo deles muda quando se transformam em vampiros, às vezes eles sequer se parecem com o que eram quando humanos. É grotesco.

A história toda era pontuada pelo desprezo que Haruka sentia pelos primeira-classes.

— Yukio foi atrás dela, mas foi um erro. Eu não sei se todos os primeira-classe ficam com sede imediatamente, ou se ela estava drenada porque quase transformou o Aki em um bloco de gelo, mas ela atacou quando ele chegou perto. Ela estava sem energia pra congelar ele, mas pelo jeito que Yukio chegou todo quebrado, ela lutou bem. Ela só parou quando estava prestes a morder ele, mas ainda devia estar pensando como humana, porque ela não quis. Ficou com nojo, ou coisa do tipo?

Nessa parte Haruka o havia encarado, como se esperasse uma explicação sobre sentimentos e comportamentos humanos, mas não lhe deu oportunidade pra falar. Daisuke preferiu assim. Seria difícil explicar para alguém que havia nascido vampira o quanto a mudança súbita na dieta era enervante.

— E três dias depois — Haruka deu uma gargalhada gostosa — ela apareceu na porta da nossa casa falando que o Akihito tinha que “assumir a responsabilidade” por ela. Aki queria executá-la. Ele estava em dúvida se mandar Han e Kamino seria o suficiente. Enquanto ele decidia eu a convidei para entrar e ver as carpas no jardim. Você devia ter visto a cara do meu irmão! No dia seguinte ele foi insistente em me encorajar a não vê-la mais. Então eu a convidei para o chá. — Haruka sorriu, as presas brilhando. — No fim ele percebeu que quanto mais ele se opusesse, pior seria, então acabou desistindo. Ele nos chamou para o escritório dele, todo "creio que é hora de falar sobre territórios. Afinal, aparentemente somos vizinhos agora." — Daisuke não conhecia Akihito o suficiente para dizer se a imitação de Haruka era precisa, mas conhecia o suficiente sobre implicância entre irmãos para reconhecer a zombaria. Sentiu um aperto no peito ao pensar em Yuu.

O incidente terminara com Akihito oferecendo a Alana uma garrafa de akaisake e permissão de caçar em seu território.

***

Nathalie ficou em silêncio depois de ouvir o relato. Ela havia soltado a mão dele e cruzado os braços no seu pequeno casulo de isolamento. Daisuke deu a ela espaço para processar o que ele havia percebido: que para alguém que havia sido transformada em vampiro de forma tão traumática quanto eles, Alana não fazia nada para facilitar a vida da sua prole. Transformação não consensual, abuso do sangue primário… ela estava no jogo há pouco mais de dez anos, e podia competir em crueldade e territorialismo com vampiros que lideravam as próprias gangues há séculos. Enquanto isso, ele refletia sobre a estranheza de um vampiro oferecer uma garrafa de bebida para outro.

— Ela ainda tem aquela garrafa. — Nathalie disse, e o comentário estava tão próximo à linha de raciocínio de Daisuke que ele se assustou um pouco — Ela disse que quem quisesse podia tomar, mas que provavelmente estava envenenado. Está na geladeira.

— Eu não acho que é assim que se armazena sakê.

Mas Nathalie estava distante demais para achar o comentário engraçadinho.

— Nat, você é do tipo que se sente melhor falando sobre o que está te incomodando?

Ela deu de ombros, mas depois de um tempo falou:

— Eu me sinto ridícula. Porque eu sei que se eu me esforçar dá pra lutar contra o sangue primário. Mas a A… Ela… vai sentir. Ela sente, e nos pergunta depois. E eu tenho medo de ser pior.

— Mas você já percebeu que existem brechas. Nem todo segunda-classe vive na sombra dos respectivos puros-sangues. — ele pesou em Constantino. Como queria ter tido uma oportunidade de perguntar ao vampiro mais velho sobre isso.

— Tá. — Nathalie se retesou, pronta para tentar algo arriscado. — Eu não posso falar sobre ela… mas eu posso falar sobre o Nando, porque ele morreu. Ele vivia enfrentando ela. Ele não durou uma semana.

Nathalie engoliu em seco.

— Mas o Pietro… Ele… estava na mesma situação que eu. E eu não sei se ela… Se ele ia morrer de qualquer jeito porque ela é doida… ou se o Pietro tentou resistir e foi punido por isso.

— Resistir o quê?

Silêncio.

Daisuke deixou os minutos passarem. O sol estava baixando, e no pôr-do-sol alaranjado o cabelo azul de Nathalie era uma bagunça de cores. Dentro de no máximo meia-hora os caçadores de vampiros começariam a chegar.

— Nat, se você não se sente confortável pra falar, você não precisa falar, mas eu acho que preciso te falar sobre uma coisa que a Haruka disse. — ele olhou rapidamente para o cabelo dela — Quando um vampiro compartilha sangue com o outro assim livremente… isso é sexual.

Foi a gota d’água que fez Nathalie começar a tremer.

— Eu… eu falei pra ela que você ia me ajudar a caçar… porque eu não queria matar pessoas e… ela falou pra em vez disso eu beber o sangue dela. Eu não saio pra caçar desde…

O que Nathalie estava descrevendo já era estupro para padrões vampiros, mas provavelmente ficava pior.

— Ela… ela… — quando Alana era o sujeito da frase nada saía, então Nathalie mudou o foco, mas parecia se sentir ainda mais abalada com isso — eu tenho que deitar com ela, às vezes. Só dormir. Ela… — gestos vagos de carícias no rosto e nos braços. — Mas às vezes… — as mãos de Nathalie fizeram um movimento vago para baixo. Ela parecia tão desconfortável que Daisuke quis sugerir que ela parasse, mas agora que ela havia começado, parecia querer levar isso até o fim. — E eu tenho que tirar a roupa. E tirar a roupa dela. E tocar ela. E… e o sangue primário dela...

A voz de Nathalie ia baixando a cada frase. Ela tinha as mãos fechadas sobre o colo e olhava para um ponto fixo na mesa. Tinha mais. Era claro pelo olhar dela que tinha mais. Mas ela não conseguia continuar falando.

Daisuke se lembrou daquela conversa meses atrás, quando Nathalie descrevera os efeitos do sangue primário.

Pra cada vampiro é diferente. Pra A… pra nós… sabe quando você está tão relaxado que a mera ideia de se mexer parece absurda?

— Às vezes eu não sei se eu não consigo resistir, ou se eu não quero, e eu me sinto…

Culpada. Porque a vida não era justa, e as vítimas perdiam o sono com culpa que não era delas, enquanto os verdadeiros culpados dormiam sem nenhuma preocupação.

— Nathalie, posso segurar a sua mão?

A vampira começou a chorar. Chorar de verdade, com soluços e lágrimas, mas colocou uma mão sobre a mesa e Daisuke a segurou com delicadeza. Ele estendeu a outra mão até a metade da distância entre eles.

— Posso fazer um carinho no seu cabelo?

Nathalie se encolheu, retirando bruscamente a mão que ele segurava. Sacudiu a cabeça.

— Ela adora mexer no meu cabelo.

Por isso cada vez que Daisuke a via ele estava mais curto.

— Sem cabelo, então. — ele estendeu a mão para ela, e ela colocou as mãos entre as dele, voltando a chorar em silêncio.

“Será que eles reconhecem que ela é uma vampira na Delegacia da Mulher?” Daisuke só conseguia pensar em fazer um BO, colocar algum tipo de poder superior para proteger Nathalie… mas mesmo que pudesse passar o dia longe de Alana, ela não estaria segura quando amanhecesse e caísse no torpor sobrenatural dos vampiros. E então ele sentiu um cheiro ao mesmo tempo familiar e estranho.

— Nat, temos que sair daqui.

— O que foi?

— Você gastou todas as suas lágrimas.

A vampira o fitou sem entender, ainda com os olhos e nariz escorrendo.

Mas o que saía agora era sangue.

Semana que vem teremos o capítulo final de Técnicas Sanguíneas - Sol Cruel, no qual Daisuke passa dos limites.

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