Técnicas Sanguíneas - Capítulo 30

No qual Daisuke faz uma descoberta inesperada.

Tempo estimado de leitura: 17 minutos

Pobre Nathalie.

Eu sei que fui eu que escrevi todo o infortúnio dela, mas eu também fico triste, ok?

Sem mais delongas, seu próximo capítulo de Técnicas Sanguíneas.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual. (agora em negrito porque estamos muito perto da parte onde isso se torna relevante)

Capítulo 30

No qual Daisuke faz uma descoberta inesperada.

O Teatro Popular era o prédio mais antigo da cidade, mas inicialmente não era um teatro. O casarão fora convertido para esse fim mais tarde, após a morte do dono, um rico excêntrico que decidira deixar a casa como patrimônio público como uma última indireta contra os filhos. Foram décadas de disputa jurídica, mas no fim a decisão foi de respeitar o testamento. Afinal, não é como se os filhos adultos, que haviam herdado as fazendas e empresas, tivessem sido deixados sem teto ou desamparados em qualquer sentido. Infelizmente, quem quer que tivesse ficado responsável pelas reformas fez de tudo para economizar custos, de forma que o teatro demorou para ficar pronto, operou por alguns anos, e então inventaram os conceitos de “saúde e segurança no trabalho” e a coisa toda fechara por ter camarotes com risco de desabamento e saídas de emergência insuficientes. As obras de renovação nunca pareciam terminar e o teatro passara a maior parte da vida de Daisuke fechado.

Agora ele estava aberto, e Daisuke sentiu uma vontade absurda de entrar e assistir o que quer que estivesse em cartaz. Afinal, ainda não havia ido ao cinema. Ao parar na beirada do prédio vizinho, notou Bárbara esperando por ele. Notou também a ausência de Hana.

— Cabelo cresce, mas você tem que crescer ele intencionalmente como se estivesse se concentrando pra “curar” o couro cabeludo, exceto que não tem nada pra ser curado, então é muita concentração e muita sede pra uma coisa meramente estética. — Bárbara disse assim que ele se juntou a ela no telhado.

— Hmm… boa noite pra você também?

Ela riu.

— Se não for uma pergunta indiscreta, por que você quis saber sobre o cabelo?

— Sei lá, e se eu decidisse raspar a cabeça e acabasse ficando careca pra sempre? Qual o sentido da imortalidade se você for calvo!? — ele deixou a voz ficar dramaticamente aguda, e então os dois riram. Daisuke se sentia um enganador contumaz. Gostava de Bárbara, mas ela lhe causava estranheza demais, uma sensação muito forte de que ela era uma inimiga em potencial, para ele simplesmente admitir que buscava essa informação para uma amiga. Com Nathalie ele se forçava a baixar a guarda, mas não conseguia fazer isso com uma vampira desconhecida.

— As suas outras perguntas também são desse tipo?

— Olha, agora que você falou eu parei pra pensar se eu realmente preciso escovar os dentes todo dia, quer dizer… vampiros por acaso tem cáries? Mas na verdade não foi pra isso que eu vim. Eu precisava de uns conselhos sobre identidade falsa e conta bancária não rastreável.

Isso fez Bárbara parar de rir.

— Sua mãe sabe que você está pesquisando essas coisas?

“Ela não é minha mãe.”

— É pra ela que estou pesquisando.

Se encararam. Bárbara não parecia que ia ceder.

— Você não tem que acreditar em mim. Porque os problemas da minha “família” seriam da sua conta?

— Considerando que sua filha mora conosco, eu diria que eles já são.

“Touché.” Suspirou.

— Todos os documentos da Haruka estão numa pasta no escritório do Akihito. E ela decidiu que está na hora de ter os próprios documentos. — e a própria conta bancária, e a própria casa. Ele se sentia 20% aliviado que ela finalmente enxergara a necessidade de sair da casa de Akihito, e 80% frustrado que ela não tinha ideia de como fazer isso sozinha. Pior do que ter que bancar a babá era ter que bancar a babá para alguém que se sentia ofendida quando apontavam o quanto ela era dependente.

— Eu posso te mostrar alguns lugares. — Bárbara disse, devagar.

“E é claro que sua família deve ter acesso a esses lugares e conseguir bisbilhotar em tudo o que fizermos…” O pensamento o incomodava, mas sabia que não havia como fugir muito disso. Ou pedia ajuda para a gangue de Constantino, ou jogava no Google “como fazer uma identidade falsa na Cidade Alfa” e torcia para os resultados serem tutoriais eficazes.

— E talvez meu pai tenha algumas tarefas pra você.

Daisuke assentiu. Sabia que esse momento chegaria, e já fazia um tempo desde a última vez.

— Entre conseguir uma pistola com balas amaldiçoadas da polícia ou da gangue do Wilson, o que você acha mais fácil de obter?

— As coisas com Wilson não estão indo muito bem?

Foi a vez da vampira olhá-lo como quem queria dizer que não lhe devia respostas. Ele não se importou. Ela realmente não lhe devia respostas, e não iria desafiá-la no território dela.

— A não ser é claro que você saiba como fazer a munição amaldiçoada.

Daisuke balançou a cabeça. O departamento de operações especiais tinha médiuns de plantão para encantar as balas, mas ele não conhecia o encantamento e nem sabia se qualquer pessoa era capaz de fazê-lo. A única escolha era obtê-las direto da polícia, ou da gangue de Wilson, que de alguma forma havia desviado um carregamento.

As duas opções eram difíceis. A gangue de Wilson havia perdido um conflito para a gangue de Akihito no ano anterior, mas não sem causar um estrago. Eles tinham os sentidos sobrenaturais de vampiro para ajudá-los. A polícia, por outro lado, eram os caçadores de vampiros. Treinados para matar os predadores sobrenaturais, sim, mas humanos. Humanos que Daisuke provavelmente conhecia. Não havia muito o que escolher.

***

O céu já tinha começado a clarear, mas Daisuke ficou lutando contra o sono até receber um sinal de vida de Nathalie. Finalmente ela enviou um “indo dormir” e ele respondeu com “vc está bem?”, mas sua mensagem sequer foi visualizada.

Na noite seguinte ele procurou Haruka.

— Posso fazer uma pergunta?

Ela já estava se preparando para dobrar as mangas do kimono para dar sangue a ele, então se surpreendeu com a pergunta.

— O que você quer saber, Daisuke?

Ele olhou de relance para Kim. Preferia não ter uma audiência. Tentou manter o tom casual.

— É uma dessas coisas sobre cultura vampira que eu não sei. Você tem uma técnica sanguínea diferente, mas os outros vampiros, — os vampiros normais, mas ele não era estúpido de dizer isso na frente dela — tem alguma circunstância onde um vampiro simplesmente dá sangue para o outro?

Para a sua absoluta surpresa, Haruka corou e pareceu extremamente desconfortável.

— Você quer dizer, sem ser para ativar uma técnica sanguínea?

Daisuke piscou. Não estava pensando em situações como Wilson oferecendo bebidas contaminadas para seus convidados. Estava pensando em como a quantidade de azul no cabelo de Nathalie variava. “Eu usei todo o azul”. Se o cabelo era indicativo dos poderes de gelo, ele não se regenerava com sangue humano. Afinal, quando Daisuke acompanhara Nathalie numa caçada o cabelo dela não mudara de cor.

Ele assentiu, e Haruka examinou cuidadosamente a expressão dele antes de suspirar. A única coisa que ela encontrou lá foi curiosidade genuína. Ele não sabia, e se ela não contasse ele não teria como saber.

— Casais fazem isso. Como preliminares. No sexo.

Definitivamente não era o que Daisuke estava esperando. Ele tinha quase certeza que se tivesse sangue o suficiente nas veias estaria corando. Seu único consolo é que Kim parecia igualmente surpreso.

— Mas alguma coisa que você queira saber, Daisuke?

— Não. — na verdade ele tinha um milhão de perguntas sobre o ciclo de vida dos vampiros que nasciam vampiros, mas ele não tinha vindo preparado para falar desse assunto.

***

A revelação de Haruka o fez esquecer de falar sobre o novo pedido de Constantino, mas sabia que não podia ficar adiando esse assunto. No fim da semana foi procurá-la novamente.

Como esperado, sua criadora não ficou nem um pouco feliz com a perspectiva de Daisuke se envolvendo num conflito.

— E se você não conseguir terminar o trabalho que está fazendo pra mim? — na frente de Kim ela nunca mencionava o plano de sair da casa de Akihito. Kim parecia lidar bem com ser ignorado, mas essas pequenas menções a planos de Haruka que Daisuke executava em segredo o faziam perder um pouco a compostura.

“Tudo isso é hábito de espionar para o Akihito? Ou será que ele está genuinamente preocupado com a Haruka?” Sabia que Kim não confiava nele, o que era irônico, porque dentre os dois, Daisuke era o que se reportava diretamente a Haruka.

— Haruka, eu te deixei todas as instruções por escrito. Em teoria você nem vai precisar de mim para isso.

Sentiu a atmosfera ao redor da vampira mudando.

— Você tem sido muito ousado ultimamente. Sempre com algum plano, e assumindo que eu vou cooperar. Você precisa se lembrar, Daisuke, que você trabalha para mim. Você não “me dá instruções”.

Ele estacou. Sentia os olhos de Kim cravados neles, bebendo o drama como se fossem as veias abertas de Haruka.

Daisuke fechou os olhos por um instante. Respirou fundo, tentando encontrar uma maneira neutra de se expressar.

— Eu aceitei trabalhar pra você, Haruka. O seu sangue é lembrete o suficiente disso. Se você não quer que eu aceite esse trabalho temporário, então eu não vou, e vou ter que lidar com a minha dívida de outro jeito. Mas se eu aceitar esse trabalho, coisas ruins podem acontecer, e eu estou me desdobrando pra não te deixar na mão independente do que aconteça comigo. Isso é um problema pra você?

Era interessante que Haruka não possuía o instinto humano de respirar fundo para se acalmar, então ela apenas ficou muito imóvel por vários segundos.

— Você é impertinente.

— Eu sou uma cria do meu século. E seu subordinado mais confiável. — Daisuke sequer tentou esconder a indireta, olhando abertamente para Kim. O vampiro coreano continuou fingindo que não acompanhava a conversa com interesse, mas a maneira como ele contraía as mãos o denunciava.

— Certo. Faça o que tem que fazer, então. — Haruka soava tão imperiosa que o efeito era estragado, fazendo ela soar como uma criança mimada — Mas não morra.

— Pode deixar.

***

— Nat, seu grupo tem alguma regra contra, digamos, se envolver numa briga com a gangue do Wilson?

Se a ligação de Daisuke fora repentina, a pergunta dele fora ainda mais. Nathalie olhou para os outros dois vampiros na base, dividindo a atenção entre a TV e os respectivos celulares de forma apática. Foi para a cozinha, torcendo para que a apatia deles fosse proteção o suficiente.

— Do que você está falando?

— Eu tenho uma briga com a gangue do Wilson agendada de qualquer jeito. Eu não acho que eu vou morrer, porque agora a gente é tipo imortal e se eu conseguir fazer uma retirada estratégica tudo se cura. Mas na dúvida eu adoraria ter o backup de uma ex-caçadora de vampiros, se você puder e estiver disposta.

Havia alguma coisa tremendamente parasita em ser uma vampira, porque Nathalie precisou se segurar para perguntar “o que eu ganho com isso?”. Não de um jeito desdenhoso ou mesquinho, mas porque realmente se sentia cada vez mais condicionada a encarar cada noite como uma batalha onde disputava território e recursos com qualquer vampiro que não fosse da gangue de Alana.

— Não tem nada que me proíba, mas… acho que essa é uma que eu vou ter que pedir permissão. Pra não ter conflito de agendas. Imagina se a gente está de tocaia, ou no meio de um confronto e a Alana me chama.

Uma pausa do outro lado.

— Nat, você está em casa?

— Quê?

— Você disse que vocês são proibidos de falar sobre a Alana e assuntos da gangue quando estão fora de casa, mas você acabou de dizer o nome dela.

Era verdade. Nathalie sentiu uma euforia ridícula. Nunca tinha parado pra pensar que haveriam brechas nas ordens de Alana. Daisuke esperou, mas quando ela não disse nada ele propôs:

— Quer me contar alguma coisa?

Nathalie pensou sobre isso.

— Tem quatro de nós, além da Alana. Ninguém está com ela há mais de dois anos. Aqui a… rotatividade… é alta.

— Ela é igual o Wilson?

Nathalie deu de ombros, e se sentiu ridícula porque Daisuke não podia vê-la.

— É o que parece. Eles se conversam às vezes.

— Será que foi ele que aconselhou ela sobre essas coisas de vampiro? — Daisuke pensou em voz alta.

— Oi?

— Ele e a Alana são primeira-classe. Aparentemente puros-sangues tem bastante preconceito contra eles.

— Do que você está falando?

Pelo tom confuso de Nathalie, Daisuke percebeu que ela talvez não soubesse sobre Alana ser uma primeira-classe. Sabia que a ligação dos dois podia ser cortada a qualquer momento se alguém do lado de Nathalie decidisse prestar mais atenção, então explicou apressadamente sobre os misteriosos humanos que viravam vampiros sem motivo nenhum.

— Essa. É a coisa. Mais bizarra. Que eu já ouvi. — Nathalie estava em choque.

— Não é?

— E a Alana…

— Eu posso te contar a história inteira quando nos encontrarmos. — ele hesitou, lembrando que Nathalie nem sempre gostava de falar sobre sua criadora — Se você quiser.

— Eu quero ouvir essa história. E eu vou… ver sobre o outro assunto também.

— Valeu, Nat. Eu queria ir qualquer noite na semana que vem, então podemos marcar para quando for melhor pra você.

— Certo.

Daisuke não queria desligar. Estava pensando no cabelo dela, e no que Haruka havia dito.

— Tem mais alguma coisa que você queria aproveitar pra dizer?

Nathalie hesitou.

— Eu… não agora.

— Ei, Nat. Eu entendo. Ansioso para semana que vem.

— Também.

— Beijo, tchau.

No próximo capítulo Daisuke e Nathalie se encontram pra conversar, e ela finamente revela o abuso cometido por Alana. As descrições não serão muito detalhadas, mas é um assunto tenso e sensível. Se esse tópico é um gatilho pra você, considere pular o próximo capítulo.

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