Técnicas Sanguíneas- Capítulo 3

Banner de fundo vermelho escuro, com vinhas e flores douradas, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos, meu nome em baixo na cor branca (A. C. Dantas)

Esta é uma cópia do capítulo 3. Ela nunca será enviada pelo Beehiv, mas é que não foi importada direito do Revue.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica.

Capítulo 3

 Daisuke e Hana entraram em uma fase de experimentação. Isso, mais do que qualquer outra coisa, foi o que lhe deu ânimo para continuar acordando toda noite, fazendo-o encontrar a força mental necessária para se concentrar e conversar.

 Descobriram que Daisuke realmente podia beber água, apesar de a garota estar certa: ela não acalmava sua sede nem um pouco. Testaram outros líquidos: suco, refrigerante, uma taça de vinho e — numa noite em que se sentiram mais ousados — um milkshake. Eles enchiam seu estômago, o que o distraía da fome por alguns minutos, mas não o nutriam de forma alguma. Decidiram testar comida sólida, e os resultados foram piores. Os sabores ainda eram os mesmos que se lembrava de sentir quando era humano, mas de alguma forma eram… menos. Como um salgadinho de baixa qualidade, com uma camada de um nanômetro de corante e aromatizantes, e o restante puro isopor. Além disso, seu organismo não estava mais preparado para digerir sólidos. Qualquer quantidade de alimento maior que uma porção minúscula lhe causava uma dor de barriga e consumia energia, deixando-o como se tivesse corrido uma maratona. Considerando que suas reservas energéticas já estavam baixas, não fizeram muitos testes. Hana pareceu desapontada com isso.

 Com o fim dos testes, começou outra fase de letargia. As criadas mais velhas não tentavam falar com ele, então não era incomum Daisuke passar duas out três noites seguidas dormindo até chegar a vez de Hana vir limpar.

 Senhor Daisuke? Senhor Daisuke, você está acordado?

 Ele estava, mas não tinha forças para abrir os olhos ou responder. Sentiu a garota sacudi-lo gentilmente, e a proximidade dela o fez perceber o quão quentinha e deliciosa ela era. Mesmo de olhos fechados tinha uma boa noção da distância e posição dela. Não seria muito difícil puxá-la para mais perto, conseguindo acesso ao seu pescoço… Daisuke abriu os olhos de súbito. Não tinha como negar que o cheiro de sangue humano era agradável, mas achava que esqueceria o próprio nome antes de sucumbir a esse tipo de pensamento. E no entanto, lá estava ele: fazendo planos para morder uma garota inocente, a única pessoa naquela mansão infestada de vampiros que falava com ele. Sentiu nojo de si mesmo.

 Levantando-se de um salto, ele murmurou um “Estou bem” com um pouco mais de violência do que desejava e saiu do quarto.

 ***

 O incidente com Hana levou Daisuke a mais um pico de energia: toda noite ele saltava do seu futon e fugia para os corredores e salas usados pelos vampiros. Continuava se recusando a interagir com eles, mas era preferível ficar lá do que perder o controle e atacar uma das criadas.

 Geralmente Daisuke se encostava à parede entre um sofá e uma planta ornamental. Uma vez, quando o sofá estava desocupado, ele se sentara, mas caíra no sono quase imediatamente. E todos os seus instintos — os de caçador e os de vampiro — gritavam que ele não deveria adormecer cercado pela gangue de Akihito. Assim sendo, ficava de pé naquele cantinho que não chamava atenção, observando o ir e vir dos vampiros, ouvindo suas conversas para tentar se manter acordado. Nem sempre a regra de falar japonês era seguida à risca, e ao longo da noite sempre surgia um grupo conversando aos sussurros em português. Prestar atenção neles era uma distração bem-vinda. Descobriu que ocasionalmente recebiam até visitantes. Quando Weiss ou Agonglô enviavam um de seus segunda-classe com notícias para Akihito o mensageiro era sempre levado direto ao escritório, mas às vezes havia um acompanhante que vinha apenas para… fofocar. Talvez as noites sem fim não fossem tediosas apenas para ele.

 Não.” Daisuke interrompeu essa linha de pensamento com firmeza. “Nada de empatia por assassinos em série.”

 E se ele se recusava a confraternizar com os vampiros, a opinião que os vampiros tinham dele não era muito melhor. Sua presença constante na sala de estar começava a chamar a atenção de um grupo particularmente mal-encarado de terceira-classes. Parou para pensar em como sabia que eram terceira-classes, mas não conseguia respaldar a certeza com um processo de pensamento lógico. Apenas sabia. Claro, talvez ele tivesse mais sorte com explicações lógicas se não estivesse sempre cansado, perdendo a concentração a cada quinze segundos e tenso por estar cercado de criaturas que jurara combater.

 まあ、それが遥様のペットでなければ.

 Falando em falta de concentração.

 Não vira quando os três vampiros haviam se aproximado. Olhou para eles com uma expressão de confusão educada, mas um pedaço da frase lhe chamara a atenção. “Haruka-sama no petto”. Uma daquelas palavras roubadas do inglês: petto, pet. O mascote da senhorita Haruka. Era ela que se referia a ele dessa forma, ou era uma ideia cunhada pela gangue de Akihito?

 O vampiro que falara parecia impaciente por uma resposta, mas Daisuke não só não falava japonês, como não tinha nada para dizer a ele. Um dos dois que o acompanhava se aproximou timidamente e murmurou alguma coisa que Daisuke supôs que fosse “ele não fala japonês”. Eles eram todos terceira-classe, e Daisuke se perguntou como formavam estruturas de poder. Senioridade como vampiro? Como membro do grupo de Akihito, anos humanos inclusos? Não conseguia identificar, e enquanto isso o vampiro brigão fez algum comentário certamente rude. O terceiro, que ainda não tinha falado, riu, e respondeu alguma coisa que — Daisuke acreditava — devia ser igualmente rude.

 Ei, você devia se apresentar para os seus veteranos. — o líder do grupo finalmente disse, em português. Ele quase não tinha sotaque. Normalmente os vampiros não tinham. Devia ser parte daquela coisa do “predador que se mistura facilmente...”

 Foco, Daisuke.”

 Tarde demais. Sentiu uma mão na sua garganta. O vampiro o ergueu com apenas uma mão. Maldição. Estivera letárgico demais para prever ou seguir esses movimentos.

 Você precisa aprender a ter respeito, novato.

 Ele parecia estar no humor para dizer mais, mas seu companheiro cauteloso disse algo em japonês que incluía as palavras “Haruka-sama”, e ele soltou Daisuke.  

 Caído no chão, passando uma mão pelo pescoço, verificando se não havia alguma marca ou indício da mão que o segurara naquele ponto, Daisuke sentiu seu sangue se agitando. O que era estranho — ele achava que, nunca tendo se alimentado como vampiro, ele estava completamente seco. Além disso, não era seu coração que bombeava o sangue. Ele já tinha notado que não tinha um pulso. E, ainda assim, sentia algo semelhante a um rush de adrenalina. Seus sentidos pareciam ter acordado completamente. Por um instante, a realidade pareceu mais detalhada do que quando era humano: os murmúrios de conversas ao seu redor, as fibras do sofá afundando sob o peso de seu ocupantes, o jogo de luz nas folhas da planta ornamental, a dureza da madeira encerada do chão, e um cheiro familiar.

 Cheiro de sangue.

 Nas criadas humanas, o cheiro era como uma nuvem de perfume que as seguia conforme andavam, mas que podia deixar resquícios por lugares em que elas passavam ou permaneciam por muito tempo. E era um cheiro… vivo. Era um cheiro que ele associava instintivamente com refeições, com força, energia, segurança. O cheiro que sentia agora não era nada disso. No máximo, um eco distante, uma lembrança de um dia ter sido. Se não fosse pelo pico de adrenalina, Daisuke sequer o teria sentido.

 Os vampiros começaram a se retirar, e Daisuke foi se levantando devagar, os sentidos sobrecarregados por cada superfície que tocava buscando por apoio, cada barulho, cada sombra que se movia na sala. Também sentia as presas impossivelmente afiadas na boca. Elas cresciam quando se preparava para atacar, ou estava apenas mais consciente delas? Se agarrou na pergunta como uma tábua de salvação, fechando os olhos e deixando o corpo relaxar. Era melhor para sua sanidade se distrair com infinitas perguntas sem resposta do que encarar o fato de que era um predador, e um segundo atrás estava tomado por instintos assassinos.

 ***

 Se Daisuke soubesse de algum lugar naquela casa onde ele pudesse evitar tanto vampiros quanto humanos, ele certamente iria para lá. Mas não sabia, e a consciência do “modo predador” só o deixava com mais medo de atacar Hana ou as outras criadas. Continuou frequentando a sala de estar, mas tentava se movimentar pelos corredores nos horários em que ela estava mais lotada. Esperava conseguir se manter longe de problemas.

 Claro que tais precauções eram inúteis quando os problemas iam atrás de você.

 Quando o trio de vampiros baderneiros tornou a encontrá-lo, foi num corredor deserto. O líder se aproximou, enquanto os outros dois se posicionaram a alguma distância, um de cada lado, garantindo que ninguém os interromperia.

 Dessa vez Daisuke não foi pego de surpresa. Como caçador, fora treinado para lutar com inimigos com força e velocidade sobrenaturais, sabia lidar com a desvantagem. Em vez de prestar atenção no insulto ou provocação, concentrou-se no golpe que sabia que viria. Deu certo. O outro vampiro o errou por centímetros inteiros, e Daisuke teve uma abertura. Se ao menos tivesse uma arma amaldiçoada…  

 Desejar foi fatal. O vampiro avançou para o segundo assalto, e Daisuke não estava preparado para recebê-lo. Foi jogado contra a parede. Seus sentidos vampiros pareceram despertar com a dor. Daisuke se levantou, percebendo com surpresa que era mais forte do que havia suposto. O impacto contra a parede não fora forte o bastante para quebrar nada, e mesmo a dor diminuía rapidamente. Quando se deparou com o terceiro assalto, o outro vampiro ainda parecia mais rápido do que ele, mas não de um modo sobrenatural, e Daisuke recebeu o oponente com uma combinação de autodefesa e imobilização de suspeito que ele aprendera ao longo de todos aqueles anos na força policial.

 O que aconteceu em seguida não estava totalmente sob seu controle. Com o oponente subjugado, os outros dois vampiros tentaram intervir, mas não foram rápidos o suficiente e Daisuke afundou as presas no pescoço do adversário imobilizado.

 Minhas. Presas.” O pensamento lhe causou horror, mas ele não conseguiu se manter pensando por muito mais tempo: ele bebia desesperadamente. Sangue, Daisuke percebeu, não parava de ter gosto de sangue quando você era um vampiro. Ainda havia aquela qualidade ferrosa e uma sensação estranha causada pela diferença de pH… mas da mesma forma que a comida humana era “menos”, o sangue era “mais”. Não importava que fosse o sangue estagnado de um vampiro de terceira classe: ele fazia Daisuke se sentir vivo. Beber lhe causava prazer, e ele sentia a força se espalhar do estômago para as veias. De repente, se sentia invencível.

 Soltou o vampiro de quem havia se alimentado. Quatro marcas de perfuração, mas não era uma mordida limpa: em sua ânsia e inexperiência, Daisuke havia rasgado a pele e o músculo. Ainda assim, o vampiro já começava a se regenerar. Os dois vampiros que ainda não tinham se envolvido se aproximaram, mas antes que pudesse atacar ou se defender, Daisuke caiu de joelhos, vítima de um mal-estar repentino.

 Cada lugar que o sangue havia tocado dentro da boca e garganta de Daisuke começou a queimar e ele adquiriu uma súbita e terrível dor de estômago. Em poucos segundos começou a vomitar, todo o sangue que havia consumido deixando seu corpo, mas parecia que havia mais sangue saindo do que havia entrado. Quando terminou de colocar tudo pra fora a sensação de queima diminuiu, mas por dentro ainda se sentia dolorido. Não só a boca, garganta e estômago — parecia se espalhar por todas as suas veias. Junto com a dor, um sentimento que por uns poucos segundos ele achava que tinha resolvido: a fome-sede enlouquecedora.

 A explosão de adrenalina passara, e Daisuke se sentia ainda mais letárgico do que antes. Claro, ele pensou, ele havia usado muita energia naquela luta inútil. Quer dizer, sequer matara o outro vampiro. O ferimento estava quase fechado agora, mas o cheiro do sangue continuava convidativo. Teve um calafrio ao lembrar da sensação de mal-estar. Ele começou a flutuar para um sono escuro, quando sua cabeça atingiu a parede com toda força. Não foi o suficiente para acordá-lo, apesar de através da confusão ele sentir uma mão levantá-lo pela garganta. Nada doía mais do que o vazio da fome.

 A próxima parte foi meio confusa. Ele tinha certeza que havia entendido a sequência errado. Ele ouviu uma batida pesada. Caiu no chão. A pessoa a quem o braço pertencia foi removida do braço que o prensava contra a parede. Apoiava a cabeça no colo de alguém. Havia sangue escorrendo para dentro de sua boca. Querendo evitar outra onda de náusea, tentou cerrar os lábios. Uma mão firme segurou sua boca aberta.

 Não seja bobo. É o meu sangue, você pode beber.

 Nesse ponto a confusão mental já retrocedera o suficiente para que pudesse reconhecer Haruka como a pessoa que o segurava. O sangue que caía em sua boca era dela e tinha um gosto diferente do do outro vampiro. Era um gosto mais encorpado, quase inebriante, e transbordando de um ingrediente extra para o qual Daisuke não tinha um nome. Não tinha a mesma sensação de algo passado, mas de alguma forma ele sabia que aquele sangue também não era “fresco”.

 Reconhecendo que ele estava novamente consciente, Haruka abaixou o braço que sangrava até os lábios dele. Daisuke não teve força de vontade o suficiente para não beber — especialmente porque, conforme as primeiras gotas de alimento chegaram a seu estômago, Daisuke percebeu que esse sangue não o deixaria doente — e isso parecia um milagre. Sentiu que estava voltando à vida. Então o sangue parou. Gentilmente, mas com firmeza, Haruka afastou o braço dos lábios de Daisuke, limpou o excesso de sangue com um lenço, expondo quatro perfurações que começaram a se fechar quase imediatamente, e se ergueu, deixando o ex-policial no chão.

 Ela se virou para falar em japonês com o vampiro que ele acabara de enfrentar. Era o único dos três ainda vivo, apesar de estar com uma aparência terrível. Uma de suas mãos estava pressionada contra o pescoço, provavelmente para conter o sangramento. Procurando os outro dois, Daisuke encontrou um braço próximo à parede, com o corpo do lado oposto da sala, e uma cabeça a um ou dois metros. O outro ainda tinha todas as suas partes reunidas, mas Daisuke duvidava muito que pudesse se recuperar do enorme corte na garganta. Quando Haruka terminou de falar, o vampiro se apressou para se colocar em segurança.

 Você não tem nada a me dizer, Daisuke?

 Ahn… Obrigado? — ele não tinha cem por cento de certeza se era isso que ela queria dizer, e ela não respondeu.

 Daisuke sentiu seu humor decair. Reconheceu o sintoma: acontecia com frequência quando estava com fome. Se ele persistisse em não se alimentar, o mau humor desaparecia conforme o corpo entrava em modo de baixo consumo de energia. Era a diferença entre estar “com fome” e “subnutrido”. Haruka o havia alimentado apenas o suficiente para evitar que ele morresse.

 Você seria capaz de lidar com esses três, se não fosse tão teimoso. Se você estiver com fome, só precisa vir e me pedir. Eu vou te alimentar.

 Quando ele não disse nada, Haruka partiu.

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