Técnicas Sanguíneas - Capítulo 28

Sobre o que aconteceu em Hong Kong

Tempo estimado de leitura: 16 minutos

Eu terminei o capítulo anterior com promessas, e hoje pretendo cumpri-las!

Falando em prometer e cumprir, anunciei para o mundo minha data de saída do Twitter. Não lembro se já mencionei aqui na newsletter, mas assim que acabar a publicação de “Técnicas Sanguíneas - Sol Cruel” eu vou fechar a minha conta lá. Incidentalmente, esse parece um bom momento pra mencionar que o último capítulo deve sair na última semana de julho. Contando com o de hoje são cinco.

Vocês estão preparados para o fim?

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 28

Sobre o que aconteceu em Hong Kong

A história de Hong Kong ainda estava martelando na cabeça de Daisuke quando voltaram para a mansão. Pensou em como Haruka confiava tão completamente no irmão que reagia de forma muito negativa à noção de que ele estivesse implicado na desobediência de Kim.

Teve uma ideia, e suspirou, porque não sabia se era pior caso falhasse ou se obtivesse sucesso.

— Haruka, você pode ligar para o Kim?

— Você sabe que ele não carrega o telefone que dei pra ele.

— Eu sei, mas eu acho que sei onde ele está guardando o celular novo. Você pode confrontá-lo quando ele vier trocar os telefones para manter as aparências.

A vampira pensou um pouco e decidiu que a ideia tinha seu mérito.

— Muito bem. — ela tirou o próprio telefone da bolsa.

— Espera. Não aqui.

O olhar que Haruka lhe lançou mostrava como ela se sentia sobre Daisuke tentar lhe dar instruções, e ele se encolheu. Ousado de sua parte tentar algo assim depois da história que acabara de ouvir. Mas Haruka não conseguia lidar com Kim sozinha e especificamente colocara Daisuke no caso, então acabou cedendo.

Em vez de tomarem o caminho usual para o quarto de Haruka, Daisuke os guiou para os arredores do escritório de Akihito. Não era um corredor muito frequentado pelos terceira-classes, e o único vampiro que viram no caminho foi Han. Haruka o dispensou dando-lhe uma tarefa qualquer. Ele hesitou, mas no fim se afastou com uma reverência, e Daisuke fez um aceno indicando que agora era a hora de ligar para Kim.

Daisuke prendeu a respiração. Não que respirasse normalmente, mas travar os músculos do diafragma ainda dava uma sensação de antecipação que combinava com empresas arriscadas como a que estava tentando agora. Começou a contar.

E então Haruka ergueu a cabeça. Ainda estavam se aproximando da porta do escritório de Akihito, e Daisuke demorou mais três passos para ouvir, no limite da sua audição: um telefone vibrava.

Haruka encerrou a chamada. O som parou. Ela bateu à porta de Akihito.

— Pois não? — ele chamou.

— Sou eu.

A porta se abriu, e por um segundo Daisuke conseguiu ver Akihito com a expressão de um irmão mais velho preocupado em vez de um gangster sociopata.

— Haruka, você saiu hoje? Seu cheiro está todo estranho.

Ela deu de ombros e começou a entrar no escritório sem convite.

— Kim precisa ser disciplinado.

A expressão de Akihito voltou à seriedade calculada com a qual Daisuke estava acostumado. O líder da gangue voltou para junto de sua escrivaninha e Daisuke deu uma olhada rápida para Haruka, confirmando se devia entrar também. Ela fez um aceno discreto, e ele entrou tentando não chamar a atenção ou sequer ocupar espaço.

— O que ele fez? Aceita um chá? — as duas perguntas vieram quase em um fôlego só, e Daisuke ficou surpreso ao constatar que no armário atrás da escrivaninha Akihito havia algumas garrafas de vinho, sakê e um conjunto de xícaras de porcelana. Sobre a mesa havia um bule de chá, e ele serviu uma xícara para a irmã. Cheirava bem melhor que o chá do restaurante.

— Não, Aki.

Isso fez com que o vampiro pausasse. Ele pousou a xícara e se sentou. Haruka pegou a cadeira que ficava do outro lado da mesa e colocou-a junto à do irmão antes de se sentar. Dessa forma parecia que os dois puro-sangues realizavam um conselho no qual a pessoa de pé diante da porta era o suplicante. Daisuke saiu de perto da porta comicamente rápido e se posicionou ao lado de Haruka. Logo logo a posição de objeto de escrutínio seria ocupada por Kim.

Sem que Akihito precisasse pegar o celular, o segunda-classe apareceu à porta em alguns minutos.

— Mestre Akihito? — perguntou ao bater e, depois de receber permissão para entrar, continuou — O senhor me convocou?

Kim travou ao ver Haruka.

— Olá, Kim.

— Senhorita Haruka…

— Me dê o seu telefone.

— Senhorita…

Ela estendeu a mão. Kim lançou um olhar furtivo a Akihito, mas aparentemente nenhuma ajuda veio dali. Tirou do bolso do paletó um celular preto, e entregou-o de cabeça baixa.

Haruka fechou o punho, e o aparelho foi despedaçado.

— Onde está o aparelho que eu te dei?

Mais uma olhadela na direção de Akihito. Daisuke gostaria muito de olhar para o lado e registrar as reações do líder da gangue, mas sua atenção estava completamente comprometida entre Haruka e Kim.

— Senhorita Haruka, eu… eu deixei ele guardado com Mestre Akihito.

— Pegue-o de volta.

Finalmente veio a oportunidade de olhar para Akihito. O vampiro abriu uma gaveta e entregou o celular a Kim como se toda essa discussão não tivesse nada a ver com ele.

— Kim, Daisuke, vocês podem nos deixar. Me esperem do lado de fora.

O tom de Haruka não dava espaço para argumentação.

***

Através das paredes de papel, Daisuke e Kim ouviam a discussão acalorada em japonês. Rápida demais e num registro linguístico arcaico demais para o pouco tempo que Daisuke estava estudando a língua, mas a maneira como Kim às vezes cerrava os punhos parecia um bom indicativo de que os dois irmãos vampiros estavam quase voando um na garganta do outro.

Alguma coisa de porcelana arrebentou contra a parede, e logo uma mancha escura de chá começou a se formar.

Kim estava perfeitamente ereto, e sua postura tensa deixava Daisuke hesitante sobre relaxar. Ainda assim, sentou-se de pernas cruzadas no chão.

— Kim? — perguntou sem olhar para o outro — Por que você mente tão mal?

O outro vampiro olhou para ele, a testa ligeiramente franzida.

— Eu estou falando sério. Você chama o Akihito de “mestre”. Custava chamar a Haruka de “mestra”? Se você conseguisse fazer parecer que a Haruka é sua prioridade, metade dos seus problemas estariam resolvidos.

“E cem por cento dos meus…” Daisuke acreditava que se Kim tivesse conseguido convencer Haruka de sua lealdade, ela não teria tentado recrutar o caçador de vampiros.

Tudo era uma consequência direta de Hong Kong.

***

— Akihito sempre foi muito precoce, sabe? Ele tentava tanto ser independente, aos 200 anos ele já queria ter o próprio território. Ele passou quase 100 anos criando uma gangue em Kyoto, e parecia que estava indo tudo bem… mas de repente ele voltou pra casa e deixou todos os negócios dele em Kyoto ruírem. Nosso pai ficou bem chateado. E então ele insistiu que precisava sair do Japão. Ver o mundo, sair do círculo de influência dos nossos pais. Ele passou um tempo indo e vindo da China… e depois de uns cinquenta anos ele me chamou pra ir com ele pra Hong Kong.

Haruka falava de cinquenta anos como Daisuke falava de três.

— Eu achei que ele quis dizer como uma viagem, sabe? E eu queria viajar! Estava ficando ofendida pelo meu irmão estar indo a lugares e fazendo coisas, enquanto eu continuava sendo tratada como uma criança. — aqui ela fez uma pausa — Em famílias vampiras, é normal deixar as crianças terem um segunda-classe, uma mistura de coleguinha para brincar e babá. E quando eu fiz meu primeiro segunda-classe, um humano do séquito dos meus pais que queria ser imortal, nós descobrimos minha habilidade sanguínea. Meu pai não gostou nada disso. Ele matou meu segunda-classe, porque eu era muito nova para ficar tirando sangue assim. Eu só tive a oportunidade de ter um segunda-classe bem mais velha, e então descobrimos que ainda por cima eu não tinha sangue primário.

Daisuke ouvia a história dela sem coragem de soltar uma única interjeição. Haruka continuou:

— Mas Akihito estava me convidando para ir permanentemente. Eu hesitei. Eu queria sair de casa, mas sair do país parecia excessivo. Eu tentei convencê-lo a retomar a gangue de Kyoto, e ele praticamente implorou para eu ir com ele. Ficamos nessa por um bom tempo, até que finalmente eu acabei cedendo.

Um suspiro.

— Hong Kong foi a melhor coisa que aconteceu nas nossas vidas. Quer dizer, o Aki se deu muito bem na Coreia, e aqui também, mas eu ainda acho que Hong Kong foi melhor. Nós saíamos juntos para intimidar os vampiros locais, abrimos negócios para ter como sustentar nosso séquito humano, e pela primeira vez eu pude escolher minhas criadas e funcionários, e fazer mais segunda-classes sem ninguém ficar me atazanando. É claro que eu comecei devagar, não é como se morder meu pulso fosse agradável, sabe? Mas os anos foram passando, eu fui vendo que dava para acrescentar mais uma aqui, outro ali. No ano que nós abrimos o cassino, eu fiz meu sexto segunda-classe. Não me olhe assim — ela acrescentou, ao ver a expressão preocupada de Daisuke — naquela época eu limitava a alimentação dos meus segunda-classes a uma vez por semana cada um. Sete dias na semana, eu achava perfeitamente razoável ter até sete segunda-classes. Mas talvez eles achassem que uma vez por semana fosse muito pouco, mesmo que eu sempre permitissem que eles bebessem uma segunda ou até terceira dose. Eles… armaram pra mim.

Os segunda-classes de Haruka haviam começado a criar terceira-classes.

— Eu não sei se você notou, Daisuke, mas por mais que eu não tenha sangue primário, meus segunda-classes têm. Então eles enviaram dúzias de terceira-classes atrás de mim, e não importa o quão objetivamente fracos os terceira-classe sejam, números são incômodos. Enquanto eu tentava lidar com essa onda de vampiros desconhecidos me atacando aparentemente sem motivo, meus segunda-classe chegaram. Eu achei que era a cavalaria vindo me salvar. Não era. Eles tinham vindo terminar o serviço. Eles beberam tanto do meu sangue… eles tiveram a audácia de perfurar minha pele com as presas nojentas e inferiores deles!… que eu desmaiei. Quando eu acordei eu estava trancada num porão.

Haruka não descreveu como foi a sua experiência em cativeiro, mas Daisuke sabia que não era uma coisa trivial manter um vampiro puro-sangue enfraquecido o suficiente para encarcerá-lo. Ela explicou que a única segunda-classe que fora contra o plano fora Lan: a primeira vampira que Haruka transformara em Hong Kong. Pela forma como a vampira falava dela, além de uma criada Lan havia sido uma confidente. Quase uma amiga, não fosse pela diferença de status. Os outros cinco a haviam matado. A segunda-classe que Haruka trouxera do Japão, cuja família servia os pais de Haruka há gerações e a acompanhava desde a adolescência vampira, estava entre os traidores.

— Eu perdi a noção do tempo, mas quando o Aki me encontrou ele disse que haviam sido cinco dias. — ela deu um sorriso enviesado, enxergando algum humor sombrio na situação. — Sabe, ele não os matou, porque se alguma coisa desse errado e ele não me encontrasse ele precisaria ter alguém vivo para interrogar. E quando acabou eu não quis matar eles. Devem ter cinco caixões de ferro apodrecendo em algum armazém até hoje.

Depois disso Akihito simplesmente encerrara a operação em Hong Kong. Ele já tinha começado a mandar agentes para a Coreia, mas antecipou a mudança em algumas décadas apenas para sair da cidade que tratara tão mal sua irmã. Haruka nunca mais havia feito um segunda-classe. De fato, por um tempo ela passara a maior parte de seus dias deitada na cama tendo ataques de choro ocasionais.

— Quando eu melhorei, eu queria ter segunda-classes de novo, mas…

Ela não precisou dizer.

A solução de Akihito fora colocar alguém da confiança dele no cargo. Haruka não tinha sangue primário, mas ele sim. Kim era permanentemente proibido de criar terceira-classes, e estava sob o mandato compulsório de servir Haruka.

***

“Exceto que quem segura as rédeas é o Akihito, e quando ele tem que escolher entre um e outro…”

— Eu sou um homem honesto. Eu não quero iludir a senhorita Haruka.

A resposta de Kim fez com que Daisuke erguesse a cabeça.

— “Honesto” não resolve o problema. — resmungou, mas sem muita convicção. No fim, Kim não podia trabalhar pra Akihito se Akihito não passasse tarefas.

Os sons da discussão diminuíram. Percebendo que alguma coisa estava prestes a acontecer, Daisuke se levantou.

Quase imediatamente Haruka saiu do escritório. Ela não tinha mais a postura combativa de alguns minutos atrás, mas ainda estava longe de estar apaziguada.

— Daisuke, Kim, venham.

Os dois a seguiram sem falar nada. Ao chegar no quarto dela, Haruka desabou sobre uma pilha de almofadas.

— Você tem sorte, Kim. Meu irmão me convenceu a não descartá-lo.

“Bom saber que essa é a alternativa para quando ela se cansar de mim…” Daisuke observava com uma curiosidade mórbida.

— E já que quando você foi banido você ficou tão entediado que não conseguiu evitar colocar suas habilidades a serviço do meu irmão, dessa vez vamos fazer o contrário. Você está em prisão domiciliar. Você vai para o seu quarto ao amanhecer, e vem para o meu quarto ao pôr-do-sol. Você só sai da minha vista com minha permissão explícita.

Agora vocês sabem o que aconteceu em Hong Kong. Não deixem de responder o e-mail e comentar.

Não percam o próximo capítulo, no qual Daisuke se interessa por crescimento capilar.

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