Técnicas Sanguíneas - Capítulo 26

No qual Daisuke sente falta de morder alguém.

Tempo estimado de leitura: 11 minutos

Já foram mais sete capítulos de Técnicas Sanguíneas, e semana que vem temos uma pausa na história para falar da minha vida — projetos, leituras, coisinhas divertidas que andei fazendo, etc. — então não fiquem tristes quando o capítulo de hoje acabar num cliffhanger pra fazer vocês ficarem extra agoniados pelo próximo.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 26

No qual Daisuke sente falta de morder alguém.

— Oi, Dai. Eu não vou poder ficar muito hoje.

Quando Daisuke e Nathalie se encontraram de novo, os dois estavam muito mais confortáveis na presença um do outro. Parecia que finalmente os instintos vampiros haviam saído do modo de perigo iminente.

— Você está péssima.

— Isso não é coisa que se diga para uma dama!

Daisuke sorriu para ela, as pontinhas das presas despontando discretamente. Nathalie revirou os olhos.

— E não é como se você estivesse muito melhor.

Era verdade. Haruka ainda não havia alimentado Daisuke após sua pequena incursão diurna. Em teoria ele sabia que não estava nem metade tão fraco quanto nos dias em que fazia greve de fome, mas a exposição ao sol havia feito a sede se intensificar tanto… Pensou em dizer isso a Nathalie, mas parou. Será que ela sabia que vampiros podiam sair de dia? Será que Alana sabia? Se Haruka sabia, então Akihito sabia, mas não tinha ideia se o conhecimento era comum entre os segunda-classes, e ainda havia algum nível de reserva que o impedia de compartilhar tudo o que sabia.

— Tudo bem. — ele concedeu — Mas eu estou feliz que você veio.

Queria ter comentado sobre o cabelo dela. Na semana anterior Nathalie usava o cabelo na altura do ombro, e agora não passava do queixo. Daisuke queria dizer “chanel”, mas não sabia se o nome podia ser usado para cabelos ondulados. Se fosse só o corte, não haveria nada demais em comentar, mas ele se conteve porque outra coisa havia mudado: a faixa azul que da última vez havia quase sumido estava vibrante outra vez. Se a mudança de penteado tivesse alguma coisa a ver com Alana, Nathalie teria dificuldade de falar sobre o assunto.

— De volta ao editorial de perguntas que eu não sei se são muito pessoais: depois daqui você vai sair pra caçar?

Nathalie assentiu, sem graça.

— Eu não me alimento faz três dias.

Não queria que fosse uma competição, mas três dias era o intervalo médio entre duas visitas a Haruka, e ele tinha certeza que não ficava tão abatido toda vez. Se Nathalie fosse como ele, a sede nunca passava completamente. Para Daisuke, isso significava descobrir qual a frequência mínima que podia se alimentar e ainda funcionar com alguma eficiência. Se fosse se alimentar até se sentir bem, estaria pendurado no pulso de Haruka toda noite, e pedindo para repetir.

— Você tinha dito que ia tentar caçar todo dia pra ver se conseguia se controlar melhor e matar menos gente. O que aconteceu com esse plano?

— Não estava funcionando. — ela sacudiu a cabeça, e brincou com as mangas longas, puxando-as para cobrir as mãos, depois forçando a costura para abrir um buraco para o polegar. Parecia um tique nervoso. — Caçar mais vezes estava me fazendo matar mais pessoas, então eu achei melhor esperar uns dias entre caçadas.

— E se eu fosse com você?

A pergunta a surpreendeu tanto que Daisuke sentiu necessidade de se explicar:

— Isso realmente parece uma coisa muito pessoal, então eu não vou ficar nem um pouco ofendido se você disser que prefere que eu não vá. Mas se você deixar eu te acompanhar, quem sabe eu não consigo te dar um toque antes de você passar do limite?

Nathalie hesitou.

— Eu não queria que um amigo meu me visse atacar um ser humano.

Nathalie estava verdadeiramente aflita.

— Nat.

Ela ergueu os olhos e Daisuke estendeu a mão. Ela ficou olhando, sem entender.

— Me dá sua mão.

Ainda um pouco confusa, ela estendeu a mão por sobre a mesa. Daisuke segurou a mão dela com delicadeza. Ao contrário do breve aperto de mãos em sua última conversa, dessa vez ele não soltou.

— Eu te abraçaria, mas desde que virei um vampiro a ideia parece péssima.

Ela estremeceu, mas sorriu de um jeito que demonstrava que entendia o carinho por trás do gesto.

— Você percebe que você passa suas noites pensando em estratégias para matar a menor quantidade possível de pessoas? Você não é um monstro. — e então o momento pediu um pouco de humor — Tirando as presas. E a pele fria. E a suspeita ausência de batimento cardíaco.

Nathalie soltou um risinho que foi metade um choro, e uma lágrima chegou a escorrer pelo rosto dela.

— Você é uma pessoa boa, ok?

— Eu… me sinto estranha sobre alguém me assistir enquanto eu estou caçando…

— Tudo bem, foi só uma sugestão. Você não precisa…

— Não, eu quero tentar.

E estavam combinados.

***

Assistir outra pessoa caçando era aflitivo. Não é que ele não tinha interesse em assistir Nathalie, mas aparentemente era um processo tão pessoal que a cada passo que ela dava ele tinha certeza de que “eu faria diferente, e o meu jeito é melhor”.

“Igual quando o Yuu me arrancava da cozinha.” Os irmãos haviam percebido em algum ponto da adolescência que tinham estilos culinários muito diversos, e se ambos ficassem na cozinha ao mesmo tempo acabavam brigando. Daisuke não fazia questão de que as coisas fossem feitas do jeito dele — desde que não visse o que o outro estava fazendo — e acabou cedendo a cozinha para Yuusuke.

No caso da caça ele tinha que observar um pouco de longe, pois Nathalie dependia da estratégia “moça andando sozinha à noite” para ser abordada por presas em potencial.

“Como Alana sendo atacada por Akihito.” Como Nathalie ficava desconfortável com a mera menção de Alana, Daisuke não sabia se ela conhecia a origem misteriosa de sua criadora.

Logo ele não teve tempo de fazer essas reflexões: um homem abordou Nathalie, e ele ficou tenso acompanhando a interação.

O homem pedia dinheiro, ou pelo menos que ela lhe comprasse um lanche. Nathalie fez uma expressão sofrida. Ao contrário de Haruka, Alana não tinha um irmão com meia dúzia de investimentos e empresas sob seu controle. Os subordinados de Alana não ganhavam uma nota de cem caso precisassem pagar por alguma coisa durante um passeio.

— Eu realmente não posso, moço.

Daisuke estava quase se convencendo de que podia “acidentalmente perder” 100 reais já que era Haruka que estava pagando, quando o homem começou a xingar Nathalie com vigor. Tanto vigor, de fato, que algumas luzes se acenderam nos prédios ao redor, e pelo menos uma cabeça curiosa espiou pra fora da janela.

Nathalie se afastou, de mal humor.

— Eu não ia atacar ele só por ser rude, mas eu também não consigo dizer “ai, coitadinho, ele é assim porque teve uma vida difícil”. — ela disse num tom de voz normal, sabendo que Daisuke conseguiria ouvi-la apesar da distância.

— Bom, eu ia deixar uma nota de cem para ele, mas agora eu também não quero mais.

Nathalie olhou para cima, localizando Daisuke no telhado de um prédio com facilidade.

— A Haruka sempre te dá dinheiro?

— Não sempre. Mas quando vou sair com você sim. Caso a gente queira ir ao cinema, uma balada, coisas assim.

— Eu confesso que tenho um pouco de inveja.

— É, eu sei que eu não tenho do que reclamar…

Nathalie ergueu a cabeça pra ele, e colocou as mãos na cintura num gesto de indignação exagerado.

— Tirando o fato de ter sido transformado contra a sua vontade e ser coagido a cooperar com a Haruka? — ao ver que Daisuke estava sem palavras, ela continuou — Nunca deixe alguém fazer você se sentir culpado por a sua vida não ser uma merda, ok? Eu queria... eu queria que a minha vida fosse melhor, mas isso não significa que eu deseje que a sua vida seja ruim.

Um pouco emocionado, ele se sentou na beira do telhado do prédio onde estava e assentiu. Deixaram o momento se esticar em um silêncio confortável.

— Nat... sempre que você vai caçar demora tanto assim?

— Você é meio impaciente, hein.

— Não, é que eu estava pensando se a minha presença não está te atrapalhando.

— Não está. É bom ter você aqui. E essa demora é natural. Não é como se um maluco inconveniente me abordasse a cada quinze minutos, e nem todas as abordagens são propícias para... sabe... puxar o cara para um beco escuro ou coisa do tipo. Se eu soubesse usar Influência seria muito mais fácil, mas aparentemente olhar para a pessoa e ficar pensando "me siga para um canto escuro sem suspeitar de nada" não funciona.

Daisuke riu, e por um instante Nathalie ficou embaraçada, até ele admitir:

— Eu faço a mesma coisa, e também não funciona. — ele hesitou — A Alana sabe usar Influência. Ela não ensinou pra vocês?

Infelizmente a menção a Alana deteriorou o humor de Nathalie.

— No geral ela não dá muita atenção para os segunda-classes. Vamos. Hoje eu tenho que voltar cedo pra base.

A vampira apressou o passo. Ela mudou de rumo, escolhendo uma rua que era mais uma viela com acesso aos portões de entrega de alguns estabelecimentos comerciais, e esperou.

Logo uma porta se abriu, jogando um paralelepípedo de luz amarela na rua. Um ajudante tirando o lixo.

Extremamente rápido Nathalie agarrou o rapaz e bateu a cabeça dele contra a lateral da pesada lixeira metálica com força o suficiente para fazer o corpo todo do rapaz amolecer, mas não para causar dano permanente. Ela se ajeitou com destreza e afundou as presas no pescoço dele.

Daisuke não estava preparado para o que sentiu ao observar a cena. Mesmo que racionalmente ele não quisesse beber sangue humano — tanto pelas suas objeções morais quanto pela habilidade de Haruka — o cheiro ainda era delicioso. Mas o pior nem foi esse. De repente ele queria morder alguma coisa. Quando Haruka o alimentava ela nunca o deixava mordê-la, e ao observar Nathalie a ânsia de cravar os dentes em alguma coisa se tornava insuportável.

Ficou observando Nathalie se alimentar. Sentia que estava sendo invasivo, mas era a única forma pela qual conseguiria cumprir sua promessa de evitar que a amiga matasse alguém.

— Nat. — ele avisou, após um tempo que pareceu adequado. Ela não pareceu ouvir — Nat!

Daisuke pulou do telhado para cima da lixeira onde Nathalie e sua presa estavam escorados. A aterrizagem foi mais pesada do que desejava, mas considerou isso um fator positivo, pois a união de movimento súbito e barulho fez com que Nathalie saltasse para trás, largando o humano. Por um segundo havia pura intenção assassina nos olhos dela, e Daisuke se pegou agachando para uma posição de combate.

— O que deu na sua cabeça? — Nathalie exclamou, finalmente parecendo recobrar a sanidade.

— Impedindo você de matar ele. Como eu prometi. — Daisuke tirou um lenço do bolso e pressionou-o contra o pescoço do homem. Nathalie não havia mordido nas principais veias ou artérias. Se o tivesse feito, Daisuke duvidava que conseguisse estancar o sangramento rápido o suficiente.

— Ele vai ficar bem?

— Eu acho que sim.

Eram vampiros, então perceberam o exato momento em que o sangramento parou. Daisuke manteve o lenço no lugar por mais alguns segundos, só por garantia, mas nesse ponto o pobre humano já dava sinais de acordar.

Dessa vez Nathalie rumou com Daisuke para os telhados.

— Como você sabia que era hora de parar?

A pergunta o deixou um pouco encabulado.

— É… mais ou menos o tempo que a Haruka me deixa beber dela.

— Ela só te dá esse pouquinho por vez?

Daisuke deu de ombros.

— Se eu pedir, ela me deixa repetir. Eu só não gosto de ficar pedindo porque… bem… uma vez ela matou alguém para repor o sangue.

Ele não queria contar a Nathalie sobre Hana. Parecia especialmente vergonhoso admitir para uma amiga que fora transformada contra sua vontade que ele próprio havia transformado alguém. Para seu alívio, Nathalie não fez nenhum comentário.

Se desculpando profusamente por querer se alimentar mais, ela continuou sua caçada.

— Eu também sempre quero me alimentar mais. Eu tenho essa impressão de que vampiros são insaciáveis. — Daisuke refletiu, e após confirmar que ela ainda se sentia confortável com a companhia dele os dois escolheram outra direção para caminhar.

A segunda vítima de Nathalie foi um assaltante, pelo que eles foram gratos. Era uma sensação horrível atacar um pobre trabalhador, mesmo que isso não resultasse na morte dele.

“Vampiros? Talvez. Traidores da classe trabalhadora? Nunca.” Daisuke sorriu sozinho.

Da segunda vez foi mais fácil para Nathalie parar quando Daisuke a chamou.

— Se eu conseguir acostumar com o timing sozinha, eu acho que essa é realmente a solução para não matar ninguém.

Mas depois disso ela se desculpou, travando nas frases como fazia quando o sangue primário a impedia de dizer alguma coisa que Alana queria manter oculta, e falou que precisava ir. Daisuke demonstrou que não ficava chateado, e perguntou se ela gostaria de repetir o exercício de caça no dia seguinte.

— Ou, sabe, todo dia até você acostumar com o timing.

— Haruka não vai achar ruim?

— Talvez? Mas “todo dia exceto quando ela precisar de um motorista pra ir à ópera” ainda é melhor que uma vez por semana, não?

— Parece ótimo.

Se despediram.

***

No dia seguinte Nathalie não apareceu.

Semana que vem não haverá capítulo de Técnicas Sanguíneas.

Join the conversation

or to participate.