Técnicas Sanguíneas - Capítulo 25

Sobre os usos que Kim confere ao seu tempo e ao seu celular

Tempo estimado de leitura: 11 minutos

Vocês gostaram do capítulo da semana passada? Eu estou feliz que esse diálogo finalmentete veio ao mundo, porque as conversas do Daisuke e da Nathalie são parte do cerne de Técnicas Sanguíneas desde que eu comecei a imaginar a história por volta de 2017.

Se vocês puderem me falar das suas impressões como resposta desse e-mail ou na rede social de sua preferência eu vou ficar muito feliz.

Também tenho um post novo no blog falando sobre contos e a experiência geral de ler obras curtas.

Banner de fundo degradê preto em cima e vermelho escuro em baixo, com vinhas e pétalas douradas espalhadas ao vento, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos. Acima e abaixo do título, na cor branca: A. C. Dantas, e parte 2.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.

Capítulo 25

Sobre os usos que Kim confere ao seu tempo e ao seu celular

— Daisuke, eu percebo que você responde minhas mensagens bem rápido. — Haruka comentou uma noite.

Ele não tinha muita certeza do que dizer sobre isso. Ele literalmente só tinha dois contatos salvos no celular, e um deles estava disfarçado de spam. Bárbara não deixava mensagens para que as conversas dos dois não ficassem registradas, e ele não tinha grupos e aplicativos de mídia social competindo por sua atenção. A única coisa que fazia seu celular vibrar — nunca tocar, os instintos vampiros davam uma pirueta com a mera ideia de estar andando pela cidade à noite e um aparelho no seu bolso soltar um barulhinho — eram as mensagens de Haruka. Se não as respondesse qual era o sentido de ter o aparelho?

— Bom, foi pra isso que você me deu o celular, né? Claro que não dá pra responder se eu estiver falando com alguém ou tentando despistar uma perseguição, mas fora isso…

— Bom. — ela disse, satisfeita, e ficou em silêncio por vários minutos.

Quando ela falou, o tom dela tinha um toque inquisitivo, como se no fundo ela quisesse fazer uma pergunta, mas achasse que isso seria vulnerabilidade demais,

— Eu acho que Kim não está usando o aparelho que dei para ele.

Daisuke esperou, caso ela quisesse acrescentar alguma coisa, e então perguntou:

— Por que você acha isso?

— O tempo de resposta dele às minhas mensagens é totalmente inadequado.

— Você sabe o que ele fica fazendo a noite toda? — por mais que não gostasse do outro vampiro, Daisuke não queria liberar a fúria de Haruka pra cima dele sem motivo. Se Kim tivesse o hábito de ir ao cinema talvez ele achasse melhor esperar para responder Haruka. Se ele passeasse muito pelos territórios vizinhos podia não se sentir confortável de baixar a guarda para responder mensagens enquanto estava fora.

Infelizmente essa parecia a pergunta errada a se fazer, pois o tom de Haruka se tornou gélido.

— É por isso que eu o monitoro, Daisuke, para saber o que ele faz a noite toda. Toda noite ele vem até mim e conta por onde passou e o que fez, e nenhuma das atividades dele justifica deixar de atender ligações minhas.

É. Estava ficando difícil de defender. O protocolo de etiqueta digital dizia que mensagens podiam ser guardadas para um momento mais conveniente, mas ligações representavam urgência. Não que Haruka tivesse “emergências” que seus dois subordinados precisassem resolver, mas ela se considerava tão acima deles que cada instrução dela devia ser de alta prioridade, e Kim estava há tempo demais nesse mundo de vampiros para não saber disso. De repente se lembrou de algo que Nathalie dissera.

— Haruka… se o Kim é segunda-classe do seu irmão… ele… — o vocabulário começou a falhar, mudou o sujeito da frase — … o Akihito tem sangue primário.

A vampira olhou pra ele, sem expressão, mas indicou com um aceno minúsculo que ele continuasse.

— Bom, isso não desapareceu quando o Kim bebeu seu sangue, certo?

— Não, Daisuke. Esse é precisamente o motivo pelo qual meu irmão o deu a mim. Kim permanece ligado ao sangue primário do meu irmão.

Daisuke registrou que a palavra que procurava era “ligado”. O puro-sangue tinha sangue primário, e o segunda-classe ficava ligado a ele. Voltou a prestar atenção em Haruka antes que ela notasse sua distração.

— Me dando um dos segunda-classes dele, Aki me garante um subordinado obediente, já que eu não posso fazer isso por mim mesma.

Era verdade, então. Haruka não tinha sangue primário. Não que duvidasse de Nathalie, mas era interessante ouvir isso da própria Haruka.

— E é por isso que no começo Akihito se opôs tanto a você. — ela continuou, e lançou um olhar apreciador para seu segunda-classe — Mas eu preferi me arriscar. Afinal, você pode não ser exatamente leal a mim, mas pelo menos sua lealdade não está comprometida com outra pessoa. Não é mesmo?

Esse era o X da questão, Daisuke percebeu. A razão pela qual Haruka montara uma armadilha que matara quase vinte pessoas era apenas porque ela estava cansada de dividir os brinquedos do irmão.

“Mas por que eu?”

Ele precisou fechar os olhos um instante, porque esse pensamento era um dos poucos que o fazia perder o controle sobre suas emoções. Haruka não o deixou pensar por muito tempo:

— Você acha que consegue segui-lo e descobrir o que o está mantendo tão ocupado?

Daisuke respirou fundo e abriu os olhos.

— Consigo.

***

O maldito despertador analógico tocou.

Daisuke sequer tentou colocar o celular para despertar durante o dia porque se conhecia bem o suficiente para saber que abusaria do botão de soneca, e lutando contra o torpor diurno era capaz dele ignorar a tarefa dada por Haruka e desligar um despertador digital completamente. A falta de prática o forçava a acordar para lidar com o despertador analógico, e depois de acordado era mais fácil simplesmente fazer o que tinha que fazer e terminar logo com isso.

Ele tinha uma teoria e um boleto para pagar.

Sair no Sol era desconcertante como sempre. Estar mais bem alimentado ajudava, mas odiava como seus sentidos pareciam tão reduzidos. Podia ser impressão sua, mas achava que enxergava e ouvia menos do que quando era humano. Sem poder acelerar a velocidades sobrenaturais, a caminhada até a lotérica demorou excruciantes quarenta minutos. Quarenta minutos sob o sol assassino das três da tarde. A coisa que mais queria no mundo era terminar o serviço e voltar pra casa, pedir para Haruka um reforço na dose de sangue, cair no seu futon e dormir até a noite seguinte.

Não faria nada disso.

Precisava aproveitar a janela em que o sol queimara todo o seu cheiro. Para outro vampiro, Daisuke teria o mesmo cheiro das paredes expostas ao sol o dia todo, e era assim que pretendia seguir Kim.

***

Daisuke escolheu um dos prédios vizinhos para montar tocaia. Nenhum prédio próximo era alto o suficiente para ver os quatro cantos da propriedade de Akihito, mas do seu ponto de observação conseguia ver três deles, com a vantagem de ficar pouco visível para alguém na rua.

Kim saiu da mansão pulando o muro mais distante de Daisuke, mas o ex-caçador ainda se considerava com sorte: pelo menos ele não saíra pelo ponto cego. Além disso, Kim saíra cedo. Daisuke estava tão exausto pelo sol que sabia quanto mais tempo ficasse vigiando, maior a probabilidade de se distrair e cometer erros.

Seu palpite sobre não ser detectado parecia correto. É claro que buscava os pontos cegos de Kim e levava a posição do vento em consideração ao se movimentar, mas algumas vezes Kim refazia os próprios passos — manobra clássica de quem queria evitar ser seguido — e passava tão perto de Daisuke que apenas a sua absoluta ausência de cheiro havia conseguido mantê-lo escondido. Em uma dessas ocasiões, Daisuke ouviu um telefone vibrando e viu Kim tirar o aparelho do bolso imediatamente.

“Definitivamente não ocupado demais para olhar o telefone.” Daisuke balançou a cabeça, decepcionado. Kim podia aplacar a ira de Haruka simplesmente respondendo mensagens rápido, então por que diabos a negligenciava? E então percebeu outra coisa. O celular de Kim não era parte de uma coleção de designer colorida, e sim o que Haruka chamara de “um retângulo preto sem personalidade” — o tipo de celular preferido por Akihito.

“Eu tenho quase certeza que a Haruka mandou ele devolver esse negócio.”

Exceto que na verdade Kim não trabalhava para Haruka. Havia uma pessoa por quem Kim parava no meio da rua para responder mensagens, a única pessoa que poderia convencer o vampiro a desobedecer uma ordem direta de Haruka: Kim trabalhava para Akihito.

Daisuke o seguiu até um prédio residencial na zona neutra. Se Kim estivesse com o celular de Haruka no silencioso, dentro do apartamento seria um ótimo lugar para olhar mensagens, ver o que sua empregadora queria e mostrar serviço. Isso se o segunda-classe tivesse algum juízo. Mandou uma mensagem para Haruka.

Daisuke

Ele entrou num apartamento na área neutra agora.

Na rua ele atendeu outro celular.

Haruka

Preto?

Daisuke

Sim.

Tenta ligar pra ele. Se a desculpa dele era porque ele estava na rua, agora ele deveria atender.

Uma pausa.

Haruka

Sem resposta.

Então era isso. Ou Kim era idiota, ou ele não carregava o celular de Haruka ao sair. Estava considerando se valia pena continuar de tocaia esperando Kim sair, quando Haruka o surpreendeu com outra mensagem:

Haruka

Eu revistei o quarto dele.

O celular que eu dei não está aqui.

Daisuke esperava fervorosamente que Haruka não decidisse revistar seu quarto. Sequer tinha coisas nele, mas era uma questão de princípio.

Daisuke

Bom, se ele deixasse no quarto ficaria muito óbvio que ele não está usando o aparelho que você deu.

Não era exatamente a sua ideia de um programa divertido para a noite, mas parecia útil descobrir se Kim deixava o celular de Haruka no apartamento. Por mais exausto que estivesse, quando era noite Daisuke não se sentia sonolento, então se manteve ocupado no celular enquanto esperava o outro vampiro sair.

Ainda esperou uma hora antes de entrar. O cheiro de Kim vinha do elevador, mas Daisuke nunca adivinharia de qual andar ele viera, então subiu pelas escadas, parando a cada piso para verificar se retomava o rastro do outro.

Finalmente parou na porta de uma quitinete no quinto andar. Juntou força vampira o suficiente para empurrar a fechadura para fora da porta, fazendo o trinco entortar. Imediatamente sentiu a sede se manifestar como um buraco no estômago. Teria que ver Haruka assim que voltasse.

Apesar do barulho, não ouviu vizinhos afobados chamando a polícia. Bom.

O esconderijo de Kim tinha uma mesa grande coberta por papéis onde um humano teria colocado armários e utensílios de cozinha. Daisuke examinou o conjunto. Uma cama, uma cômoda, três caixas de papelão e uma mala que Daisuke não sabia se estavam sendo feita ou desfeita, uma pilha de livros de aparência velha, uma escrivaninha com um computador — um desktop com monitor antigo — e a mesa da cozinha. Revistou a cômoda, a mala e as caixas, mas sem esperança. Da mesma forma que deixar o celular de Haruka para trás quando saía seria suspeito, não tê-lo quando voltava seria ainda mais. Se Kim não carregava o aparelho consigo, ele devia deixá-lo em algum lugar seguro no caminho.

Encaminhou-se para os livros. Era uma inofensiva coleção de novelas em japonês e coreano, uma brochura fina em chinês. Os únicos volumes em português eram um guia turístico da Cidade Alfa e um manual de gramática para concursos. Também havia um livro de “Business English for beginners”, mas pelo estado dele — as margens poluídas com anotações em três línguas nas dez primeiras páginas e depois abandonado no fundo da pilha — não deveria ser tão “para iniciantes” assim. Daisuke se afastou dos livros se sentindo um pouco culpado por bisbilhotar.

Em compensação, não sentia culpa nenhuma ao analisar o conteúdo da mesa da cozinha. Pelas datas, Kim continuara cuidando da papelada de Akihito não apenas durante todo o seu exílio, mas desde que voltara também. Akihito podia ter “dado” Kim a Haruka, mas continuava usando o segunda-classe como secretário para assuntos humanos: escrituras de imóveis que, pela descrição, variavam desde lojinhas em galerias até consultórios de dentista e uma firma de direito; holerites dos funcionários humanos; extratos bancários diversos.

Daisuke fotografou tudo. Cogitou mandar as fotos para o DECEPA. Com esse tipo de informação, os caçadores poderiam congelar as contas de Akihito sob qualquer pretexto — identidade falsa, suspeita de assassinato, imigração ilegal — e forçar a gangue a reduzir drasticamente suas atividades. Duas coisas o impediram, e a lembrança do final desastroso do seu encontro com os caçadores foi apenas a segunda. A primeira foram as palavras de Nathalie:

Sabe qual a pior parte do que você me contou? Que você não ganhou nada por passar essas informações pra eles. Eles podiam ter pelo menos te levado ao cinema.”

Daisuke suspirou, começando a minimizar as provas da sua passagem pelo apartamento e se preparando para voltar. Talvez algum dia encontrasse um jeito de atrapalhar as operações de Akihito, mas por enquanto não valia a pena se arriscar — ou arriscar seus ex-colegas policiais. Por enquanto, Haruka podia decidir o que fazer com Kim.

Infelizmente havia perdido a janela para seguir Kim de volta para a mansão e tentar localizar onde o outro escondia seu novo celular quando não estava em uso.

“Exceto que na ida eu não vi ele parar…” Daisuke sequer chegou a completar o pensamento, de tão óbvia a resposta.

Se Kim continuava a carregar o celular que Akihito lhe dera, só podia ser por orientação do próprio Akihito. E se o puro-sangue incentivava o segunda-classe a desobedecer a irmã, com certeza ele o acobertaria também. O único lugar onde Daisuke não saberia se Kim havia feito desvios ou paradas era dentro da própria mansão.

“Haruka não vai gostar nada disso.”

Tinha uma terceira coisa que Daisuke queria, e pelo jeito era hora de apresentar esse tópico para sua criadora: queria que Haruka saísse da casa do irmão.

Não percam o próximo capítulo, quando Daisuke sente falta de morder alguém.

Join the conversation

or to participate.