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Técnicas Sanguíneas - Capítulo 23
No qual Daisuke e Nathalie ficam reticentes sobre etiqueta.
Tempo estimado de leitura: 11 minutos
Vocês se lembram do Stravo’s?
Era um lugar mais ou menos assim:
Era lá que o Daisuke e a Charlotte se encontravam, e a Cidade Alfa tem muitas lanchonetes genéricas nesse estilinho.
O capítulo de hoje é mais conversa, e eu pessoalmente adoro esses. Se você também gosta dos capítulos de conversa, responde esse e-mail dando um oi, falando suas impressões. Não precisa ser nada complicado, um emoji de coração tá valendo <3
Em outro editorial, também escrevi um post sobre Blade Runner no meu blog. Você pode ir lá conferir depois que terminar aqui.
Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica. Podem ocorrer também menções ou alusões a abuso sexual.
Capítulo 23
No qual Daisuke e Nathalie ficam reticentes sobre etiqueta.
O restaurantezinho-quase-lanchonete era tão parecido com o Stravo’s que Daisuke olhava para o piso preto e branco e via o dia em que vomitara sangue durante a conversa com Charlotte. Podia quase ouvir a voz insidiosa de Akihito propondo matar os quatro caçadores e não contar a Haruka sobre as pequenas escapadas de Daisuke. Suspeitava que Haruka havia escolhido o local de propósito.
Alana havia dado permissão para que Nathalie se encontrasse com Daisuke, mas a outra ex-policial não tinha um celular, de forma que Alana e Haruka escolheram um ponto de encontro para eles.
“Elas só não escolheram o horário” Daisuke resmungou. Havia colocado o despertador para logo após o pôr-do-sol. Se Nathalie fosse o tipo de vampiro que acordava cedo, não queria deixá-la esperando.
“Exceto que se ela for do tipo que acorda tarde, quem fica esperando sou eu…”
Tentava se consolar dizendo a si mesmo que não tinha planos melhores.
Ao chegar, fez uma tentativa honesta de ler as notícias no jornal ou ao menos jogar um joguinho, mas sua atenção se desviava continuamente para as pessoas. Quem entrava, quem saía, que grupos conversavam alto, quais sussurravam. Ele já havia reparado nisso antes. Normalmente preferia andar sozinho pelas ruas e telhados da cidade, mas sempre que se misturava em uma multidão ou estabelecimento comercial, se sentia sintonizado com a movimentação das pessoas. Em algum nível entendia que eram instintos vampirescos despertando, convidando-o a prestar atenção em padrões, mas ainda não tinha experiência o suficiente para entender o que significavam.
Eventualmente seus instintos se deram por satisfeitos, o ritmo do restaurante se tornando mais ou menos previsível, e Daisuke ficou livre para pensar de novo. Lembrou-se do que Haruka havia dito sobre Alana. Aparentemente a vampira nutria um ódio profundo por Akihito.
Daisuke se pegou pensando que, de certa forma, Alana era parecida com ele. Havia sido humana num dia, para no outro ser uma misteriosa vampira de primeira classe. Daisuke pelo menos sabia que vampiros existiam, e os riscos da sua profissão. Ela deve ter precisado juntar as peças por conta própria.
“E ainda assim… eu não consigo sentir empatia.”
A lembrança de Alana se debruçando sobre ele e bebendo o pouco sangue que lhe sobrara nas veias o impedia de vê-la como qualquer coisa que não uma predadora, tão adaptada para a matança quanto Akihito ou Haruka. Seu único consolo era que, se ela odiava Akihito tanto quanto Haruka dava a entender, era improvável que o que quer que Daisuke conversasse com Nathalie fosse levado de volta para Akihito.
— Um espresso, por favor. — Daisuke pediu ao garçom. Enquanto esperava, percorria o menu em ordem alfabética, pedindo uma bebida a cada trinta ou quarenta minutos para justificar ter tomado posse de uma mesa.
O movimento do restaurante mudou de configuração. Clientes que jantavam correndo, saindo de um trabalho para ir para outro, ou possivelmente para a faculdade, davam lugar a grupos de pessoas que haviam tido tempo de chegar em casa e tomar um banho antes de vir socializar, e Daisuke se sentiu compelido a prestar atenção na multidão. Ele ainda não havia se aclimatizado ao novo fluxo de pessoas quando Nathalie chegou.
A diferença foi nítida. Como se tivessem abaixado o volume de todas as pessoas no restaurante para que Daisuke pudesse se focar na outra vampira. Claramente os instintos vampiros tinham prioridades. A pior parte, ele pensou, é que por fora ela parecia exatamente a mesma pessoa. Até a mecha azul da outra vez havia rescindido. Estava abatida, claro, mas não mais do que quando era humana e passava alguns dias com o sono insuficiente. Será que ele passava a mesma impressão? E mesmo Nathalie sendo uma figura quase tão familiar quanto Charlotte, a cada passo que ela dava, algum instinto dentro de Daisuke tentava recalcular uma rota de fuga.
“Ela não é uma inimiga.” Disse a si mesmo em tom de reprimenda. Se forçou a sorrir, mas sem mostrar as presas.
— Oi, Nat.
Será que ela sentia a mesma coisa? A competição predadora por território, a vaga impressão de que o outro era uma ameaça? Ela certamente parecia tensa, e ficou vários segundos parada ao lado da mesa antes de responder, com uma tentativa patética de sorriso:
— Oi, Dai.
Devagar, ela se sentou na cadeira diante dele. Podia ver que ela estava se esforçando para não fazer movimentos bruscos e manter uma postura amigável. Um esforço tão consciente que até doía. Daisuke sabia que estava fazendo igual.
“Isso está pior do que me encontrar com a Charly…”
— Ei, obrigado por vir.
Nathalie pareceu prestes a dizer alguma coisa , mas mudou de ideia. Sacudiu a cabeça, e dessa vez sorriu de um modo um pouco menos mecânico.
— Obrigada por me convidar.
Ficaram em dúvida sobre o que dizer a seguir, mas foram salvos pela chegada do garçom, que considerara a chegada de Nathalie como um sinal de que os ocupantes da mesa estariam prontos para pedir algo além de bebidas.
— Uma água por favor.
— Mocha caramelada.
O garçom se afastou, um pouco desiludido, e Nathalie encarou Daisuke.
— Que tipo de pedido foi esse?
— Por que não? Não serve pra matar a fome, mas também não faz mal.
— Não?
Daisuke olhou pra ela, tentando manter o olhar e o tom de voz suaves.
— Você não tentou comer comida normal desde… — ele hesitou. Não sabia muito bem como se referir de maneira casual à noite em que uma operação policial dera desastrosamente errado e resultara no que efetivamente podia ser considerado sua morte. Teve a distinta sensação de que Nathalie havia entendido, mas também não parecia ansiosa para tocar no assunto. Se forçou a terminar. — …a transformação?
— Não. — havia esse sentimento de antecipação, como se ela não soubesse o que mais dizer, mas não quisesse matar a conversa. — Por um lado, parece que a comida ainda tem o mesmo cheiro, mas por outro... simplesmente não é mais apetitoso. Não sei se isso faz sentido.
— Faz, faz perfeito sentido. Eu penso a mesma coisa. Na verdade, eu meio que fiz experimentos. — ele sorriu, se sentindo bobo. — Eu ficava muito entediado.
Nathalie devolveu o sorriso.
— Mas, falando sério, por que me chamou aqui? — a pergunta foi feita com toda a delicadeza que a vampira conseguiu imprimir à voz.
Daisuke entendia que ela não estava sendo rude, mas queria genuinamente saber e escolhera ir direto ao ponto. Agora que ela questionava suas motivações, Daisuke se sentia encabulado. Já havia visto Haruka corada, mas apenas após se alimentar. Ele não achava que tinha sangue o suficiente nas veias para isso.
— Eu queria alguém com background parecido para conversar sobre essa coisa de vampiro. O problema é que eu não sei nada sobre etiqueta vampira e eu fico com medo de perguntar alguma coisa super pessoal ou algum tipo de tabu.
— Eu... eu também não sei muito sobre etiqueta vampira.
Sorriram um para o outro, e finalmente Daisuke sentiu que o instinto de fuga relaxava um pouco.
— Então eu proponho um trato. Eu te faço uma pergunta, você responde se estiver confortável. Daí você me faz uma pergunta, e eu respondo se me sentir confortável.
Ele estendeu a mão para ela por cima da mesa, e eles selaram com um aperto de mão. Foi um gesto estranho. Daisuke percebeu que, exceto pelos momentos em que se alimentava do sangue de Haruka, nunca encostara em outros vampiros sem a intenção de matar ou ferir.
A mão de Nathalie era fria ao toque. Ele tinha certeza de que ela fazia observações semelhantes sobre ele.
— Primeiro as damas.
Para sua surpresa, Nathalie deu uma risadinha.
— Eu… — ela começou a explicar, hesitante — Não imaginava que sentisse tanta falta de cavalheirismo.
Daisuke fez uma mesura exagerada.
— Ao seu dispor, madame.
— Pelo jeito o cavalheirismo não está morto.
— Aí eu já não sei, dá última vez que eu chequei eu não tinha pulso.
A princípio riram, mas a graça dessa última não durou por muito tempo. Nathalie esperou um pouco antes de começar:
— A gente está morto, né? Eles devem até ter feito uma lápide com nossos nomes pras nossas famílias colocarem flores. — ela esperou o olhar de confirmação de Daisuke — Você visitou o seu túmulo?
— Não. Eu… — “Eu não tive coragem de me envolver com nada referente à minha vida antiga”, era o que ele queria dizer, mas seria uma mentira. Havia se envolvido com os caçadores de vampiros. Queria contar a Nat sobre tudo isso, mas ainda não parecia a hora. — Eu não tive coragem.
Uma pausa.
— E você? — ela balançou a cabeça — Nesse caso, sua vez de novo.
Ela assentiu, mas demorou um pouco para falar. Daisuke achava que entendia porque. Tudo que queria perguntar a ela soava errado. “Você bebe sangue humano?” Ela era uma vampira há um ano e meio, e não era parte da progênie aberrante de Haruka, é claro que bebia sangue humano! “Você gosta de beber sangue humano?” Muito pessoal. Se a resposta fosse “não”, era um lembrete desagradável de que haviam sido sequestrados, fisiologicamente mortos e mantidos em cativeiro. E se a resposta fosse “sim”, como proceder? Não sabia se estava preparado para ouvir uma amiga de seus dias de policial dizendo que gostava de matar pessoas.
— Bom, vejamos... é verdade que a Haruka não tem sangue primário?
Ele estava tão entretido com os próprios pensamentos que quase perdeu a pergunta de Nathalie.
— Desculpe, que ela não tem o quê?
— Minha nossa, é verdade, então. Quer dizer, se ela tivesse, você ia saber.
A resposta deixou Nathalie em tal estado de agitação que Daisuke sentiu os nervos triscarem com a vontade de colocar uma distância segura entre si e a colega.
— Tá. Mas o que é isso?
— Eu não acredito que ninguém nunca te contou.
Daisuke sentiu uma pontada de irritação.
— Eu não falo com a gangue do Akihito, e eles não falam comigo.
— E a gangue da Haruka?
— Não tem uma "gangue da Haruka". Tem eu. E um tal de Kim que ficou um ano sem dar as caras.
Nesse ponto Nathalie pareceu perceber o desconforto e leve animosidade dele. Ela se forçou a diminuir o tom. Sua postura continuava amigável, mas apenas através de muito esforço. Como se pedisse desculpas, ela explicou:
— Lembra como na polícia a gente sempre se perguntava porque as pessoas transformadas não iam, sei lá, atrás da família? Ou porque os segunda classe não se juntavam para depor os puro sangues? Bom, é por isso. Quando você vira um vampiro a pessoa que te transforma, a origem do seu sangue, tem um controle sobre você. Por isso "sangue primário".
— Eu… não sei se entendi.
— É... assustador.
Disso Daisuke não duvidava, mas ele queria mais.
— Bom, é minha vez agora, certo? Você pode me contar como funciona o sangue primário? Qual é a sensação?
Nathalie ficou em silêncio por tanto tempo que ele achou que a pergunta passara dos limites e ela se recusaria a responder.
— É difícil explicar. — ela disse finalmente — Pelo que eu entendi, pra cada vampiro é diferente. Pra A… pra nós… sabe quando você está tão relaxado que a mera ideia de se mexer parece absurda?
— Sei. — Daisuke respondeu prontamente, e sentiu a necessidade de explicar — Minha mãe era massoterapeuta.
Falar de sua mãe, mesmo assim de passagem, foi surpreendentemente doloroso. Nathalie entendia. Depois do que pareceu um silêncio respeitoso, ela continuou:
— Pois é. Se ela manda a gente ficar quietinho em casa… sair parece um esforço absurdo. E se pelo contrário ela manda a gente sair e fazer alguma coisa… tipo caçar… mesmo que eu diga “eu não vou sair, eu não vou sair, eu não vou sair”… quando eu vejo eu já estou na porta. Daí eu volto. E acontece de novo. E eu vou ficando com raiva, tipo, eu nem quero sair!
— Como ficar abrindo a porta da geladeira a cada cinco minutos mesmo sem estar com fome.
A comparação era tão absurda — e ainda assim apropriada — que Nathalie riu.
— Exatamente assim. E fica essa sensação de alguém insistindo, enchendo o saco, e resistir a isso gasta energia. Uma hora eu acabo indo pra rua, e eu fico sem saber se eu fiz isso porque eu quis, ou se eu podia ter resistido indefinidamente e só… não fui forte o bastante. Eu tento compensar dizendo “ok, eu sai de casa, mas eu não vou caçar”. Voltar pra casa nem é uma opção, porque bate aquela moleza. E eu fico andando no meio da rua, sentindo o cheiro das pessoas, tentando não pensar que no fundo eu estou mesmo com um pouco de fome… e vai chegando cada vez mais perto do amanhecer, e eu vou ficando preocupada com isso também, e quando eu vejo… “Ops, assassinato!”
O tom dela era tão cheio de auto reprovação. O silêncio voltava a ficar pesado.
“Pelo menos ela não gosta disso…” Daisuke se forçava a ver as pequenas alegrias. Mas não gostar de matar não era o mesmo que não gostar de sangue. Ele se lembrava do sangue de Charlotte — o único sangue humano que havia provado — e começava a desenvolver um apreço até pelo sangue carregado de mágica de Haruka. Sua curiosidade mórbida queria impeli-lo a fazer essas perguntas, mas agora era a vez dela.
Nathalie assumiu um tom cuidadosamente neutro.
— Daisuke, se a Haruka não tem sangue primário... por que você não foge?
No próximo capítulo, Daisuke explica suas motivações.
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