Técnicas Sanguíneas - Capítulo 7

Banner de fundo vermelho escuro, com vinhas e flores douradas, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos, meu nome em baixo na cor branca (A. C. Dantas)

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica.

Capítulo 7

 — Ei, Dai, você consegue usar Influência?

 Depois de algumas semanas desses encontros, Daisuke sabia que já estava testando sua sorte, mas ainda não se sentia preparado para parar de ver Charlotte.

 — Pra falar a verdade eu não sei. Eu nunca tentei.

 — Por que você não testa em mim? Não me olhe assim, não é como da última vez. O pior que pode acontecer é você falhar.

 “Errado, Charly.”

 — Bem, eu consigo pensar em um punhado de razões pela qual não funcionaria. Em primeiro lugar, você está esperando por isso. Pedindo, de fato. Em segundo lugar, você foi treinada para resistir. E terceiro, não tem nada que eu queira influenciar você a fazer. Eu absolutamente não tenho motivação.

 Estava mentindo. Tinha tantas coisas que queria.

 Queria que Charlotte esquecesse que ele era um vampiro. Cada vez que se encontravam ela perguntava alguma coisa sobre sua condição: exatamente o quão forte é um vampiro? De quanto sangue ele precisava pra ficar bem? No começo parecia uma demonstração genuína de interesse pela vida dele, mas agora começava a ficar um pouco mórbido. Queria que Charlotte lhe desse algum presente — um celular, jogo portátil, cubo mágico — qualquer coisa para lhe dar uma distração nas noites em que não a via e suas escolhas eram ou andar em círculos pelo território ou passar a noite encarando as paredes. Queria que Charlotte esquecesse que era casada e flertasse com ele.

 Morria de vergonha desse último. Daisuke era daqueles que só conseguia sentir atração por pessoas com as quais tinha alguma intimidade. E como Charlotte era praticamente a única pessoa com quem conversava, o crush que nutria por ela antes dela se casar estava voltando com tudo.

 “A pior coisa que pode acontecer é eu conseguir e você decidir nunca mais vir me ver.”

 A ex-parceira não parecia satisfeita com a resposta, mas não insistiu.

 — E se pra variar a gente não falasse sobre vampiros? E se a gente falasse de alguma coisa normal?

 — Normal tipo o quê?

 — Sei lá… que tal filmes?

 — Filmes? — Charlotte adquiriu uma expressão incrédula.

 — É! Faz um ano que eu não assisto um filme! O que está no cinema agora?

 Ela demorou um pouco para pegar embalo, mas depois de alguns minutos ela estava gesticulando e dando detalhes sobre a trama de algum filme de assalto que ela e o marido haviam assistido juntos. Paulo gostava de comédias românticas, e Charlotte gostava dos filmes de ação. Filmes de assaltos e golpes eram uma espécie de terreno comum. Algumas vezes durante o relato Daisuke sentiu sua atenção deslizar, reparando mais no movimento dos lábios de Charlie do que nas palavras que ela dizia. Forçou-se a retomar a concentração.

 E então teve uma ideia.

 — Charly… por que a gente não vai ao cinema? Tem alguns lugares legais na área neutra e… hum… você sabe que eu não posso beber sangue, então será que você não consegue me levar na área sem vampiros? Quer dizer… desde que não sejamos vistos por um caçador...

 Charlotte pareceu considerar a ideia.

 — Bom, eu teria que falar com o John sobre isso.

 — John?

 — Oh. — ela não percebera que havia dito aquilo em voz alta – É o Rivers. Ele virou meu parceiro depois que você… foi embora.

 Parceiro.

 É claro. Ele deveria ter esperado por isso. Charlotte era uma policial, e quando seu parceiro havia — para todos os efeitos — morrido, é claro que ela receberia um novo. E é claro que com o tempo eles se tornariam próximos: fazia mais de um ano. Ainda assim, Daisuke se sentiu traído, e a sensação de ser apunhalado pelas costas despertou nele uma raiva assassina que ele não estava acostumado a sentir. Ele queria rasgar Rivers em pedaços, como Haruka havia feito com aqueles vampiros. Estremeceu com o pensamento, se forçando a se acalmar.

 — Dai? Você parece chateado. Eu deveria ter te contado antes… mas… bem, eu não queria que você sentisse que estava sendo deixado de fora.

 — Ele sabe que andamos nos vendo?

 — Sim. Seria errado não contar para o meu parceiro. Ele só me deixou fazer isso na condição de que ele ficaria me esperando lá fora, e se eu não mandar uma mensagem a cada meia hora ele vai vir verificar.

 Isso explicava a presença constante do celular dela sobre a mesa. Nas primeiras noites Daisuke havia estranhado. Charlotte tentava criar o filho sem excesso de eletrônicos, e advogava para quem quisesse ouvir que não era adequado mexer no celular à mesa.

 — Justo. Quem mais sabe?

 — Salado do laboratório. Porque daquela primeira vez ele queria me testar para ver se a mordida de vampiro estava fazendo alguma coisa. E para ter certeza que você não tinha usado Influência em mim.

 “E você querendo que eu use Influência...”

 — O chefe sabe?

 Ela hesitou.

 — Não... Antes de falar pra ele queríamos coletar evidência de que você é… sabe… inofensivo.

 — E aí, eu passei? — Daisuke abiu um sorriso que mostrava as presas superiores. Charlotte riu e o cutucou.

 — Bobão.

 Daisuke ficou surpreso com o quanto o contato físico — por mais infantil e jocoso que fosse — foi reconfortante. Traços de humanidade que um ano de transformação não conseguiam apagar.

 — A gente está pensando em falar com ele ainda essa semana. — Charlotte continuou. — Salado estava querendo te convidar pra fazer uns exames. Testar sua força, colocar você para correr na esteira, esse tipo de coisa.

 Alguma coisa ruim ficou presa na garganta do vampiro. A amiga olhava pra ele com expectativa, mas Daisuke sentia dificuldade de falar. Quando finalmente conseguiu, não gostou do resultado.

 — Ah, sim. Uns exames. — sua voz estava tão cheia de suspeita e raiva — Injetar fluidos, me acorrentar numa mesa e me expor ao sol, esse tipo de coisa…

 — Daisuke! Como você pode acreditar que eu deixaria eles fazerem alguma coisa assim com você?

 Os dois ex-parceiros se encararam. Daisuke com desconfiança e instintos assassinos, e Charlotte com tristeza e choque. Daisuke sentiu a agitação trabalhando no seu corpo vampírico, o coração morto-vivo parado, mas o sangue correndo por alguma magia misteriosa. Se estivesse vivo diria que era a adrenalina. Morto, podia ser qualquer coisa. Mas, o que quer que fosse, também o deixava mais sensível a mudanças no seu ambiente. O cheiro de Charlotte havia mudado.

 Lembrou-se de todas as vezes que os caçadores de vampiros — inclusive ele próprio — haviam dito que os malditos sanguessugas conseguiam “sentir o cheiro do medo”. Era isso que estava sentindo. Fizera Charlotte ter medo dele.

 “Céus, essa noite está sendo um desastre.”

 — Desculpa, Charly. — ele se forçou a liberar todos os músculos que havia contraído, inconscientemente se preparando para um ataque. Tornou a falar naquele tom de voz baixinho dos primeiros dias, tentando soar reconfortante e apologético. — É só que… foi tanto sangue derramado entre vampiros e caçadores que eu simplesmente não consigo acreditar que eu vá ser uma exceção.

 Charlotte relaxou também, mas Daisuke jurou notar um tremor nas mãos dela.

 — Sangue derramado… Esses trocadilhos infames.

 O que quer que ela estivesse sentindo, ainda se sentia confortável para brincar com ele. O alívio foi tanto que Daisuke se pegou rindo bem mais do que a piada merecia. Um segundo depois Charlotte o acompanhou.

 Talvez a noite ainda tivesse salvação.

 ***

 — Senhor Daisuke, a senhorita Haruka disse que você deveria vê-la antes do nascer do sol. — Yu Jun informou assim que ele colocou os pés na propriedade.

 Bem quando Daisuke começava a pensar que sua vida lhe pertencia, ele era convocado. Se fosse Hana trazendo a notícia, tentaria obter mais algum detalhe antes de ir ver sua criadora. Talvez fosse o momento de Haruka começar a chantageá-lo. Comida em troca de favores. Como o animal de estimação que os subordinados de Akihito diziam que ele era.

 — Você ainda está saindo toda noite? — ela perguntou. Ele não sabia se era um teste, então preferiu se ater aos fatos.

 — Quase toda noite. — Era a única coisa que podia fazer pra matar o tédio, além de ajudá-lo a evitar a gangue de Akihito. E sabia que se fosse visto na área neutra frequentemente, ninguém acharia estranho caso o vissem entrando no Stravo’s.

 — Você precisa de dinheiro?

 A pergunta o deixou desorientado.

 — Sabe, para comprar roupas e essas coisas. Eu te dei essas quando te trouxe, mas talvez você queira alguma coisa que se adeque melhor aos seus gostos. Ou coisas para passar o tempo, como filmes ou videogames. Os subordinados do meu irmão gostam dessas coisas.

 Haruka falava de filmes e videogames como se fossem coisas que aconteciam com outras pessoas. Daisuke olhou ao redor, notando o quarto abarrotado da vampira. Música e pintura, arranjos florais, diversos tipos de artesanato, mas não muitos eletrônicos.

 — Eu acho que não tem nada que eu precise.

 — Muito bem, então. Se esse é o caso… mas se precisar de dinheiro para as suas coisas, me avise.

 E isso foi tudo.

 Daisuke voltou ao seu quarto e olhou para as poucas roupas empilhadas no armário. Seu armário, eles diriam, mas ele não sentia que nenhuma coisa naquela casa pertencia a ele de fato. Será que isso mudaria se comprasse decorações usando o dinheiro de Haruka? Provavelmente não.

 ***

 Muito mais cedo do que ele esperava, Daisuke se encontrou sentado diante do chefe. Conseguia perceber que o velho policial estava usando o mesmo tom suave e movimentos lentos que ele usava com Charlotte, e se sentia grato por isso. Estava dolorosamente consciente do instinto de fuga, e da pistola com balas amaldiçoadas que o chefe carregava na cintura.

 — Sabe, no começo eu fiquei furioso com Dumas e Rivers. Pensei em tirar eles da equipe de vez. Mas estou feliz que esperei pra me acalmar antes de decidir. Eu acho que o jeito que as coisas se desenrolaram foi positivo.

 Daisuke abriu um sorriso tímido. Era bom não ser considerado um inimigo da humanidade. Ainda assim, ele precisava cobrir todas as bases.

 — Por que, chefe? Eu achei que assim que você descobrisse, esses encontros iam parar. Você sempre nos disse pra não pensar com muito carinho nos vampiros, nunca assumir que existe “esse um que é diferente dos outros”. Então por que estou ganhando tratamento especial?

 O chefe suspirou. Sabia que Daisuke havia aprendido a desconfiar de vampiros graças ao seu exemplo.

 — Encontramos o Moxley morto.

 — Moxley?

 — Ele foi uma das baixas da noite em que perdemos você. Fazem… alguns meses. Pelo que o Salado analisou, ele estava com a gangue do Weiss. Nós o encontramos no território do Wilson.

 Wilson era o puro-sangue que que controlava a parte norte da cidade. Diziam que ele era um sujeito… peculiar. Daisuke não sabia muito mais sobre ele em relação a seus dias de caçador — assim como Constantino, Wilson não era parte da aliança entre Akihito e os puro-sangues da cidade.  

 — Wilson fez isso? Quer dizer, óbvio que não pessoalmente, mas…

 — Não temos com ter certeza. Mas achamos que não. Ele foi largado no meio da rua como eles fazem na zona oeste. Parece trabalho interno. Talvez… talvez ele estivesse tentando fugir.

 Daisuke passou um dedo pela borda de seu copo — continuava pedindo bebidas, pelo hábito, e pela distração que elas proporcionavam em momentos assim. O chefe continuou.

 — Por todos esses anos, achávamos que ser mordido mudava a cabeça da pessoa. Mas se tem uma chance de vocês ainda serem vocês, e acima de tudo uma chance de vocês viverem sem matar pessoas… é o lema do DECEPA, Daisuke.

 — “Não matamos monstros, salvamos pessoas.” — o vampiro recitou automaticamente.

 O chefe assentiu.

 Daisuke refletiu sobre o assunto. Havia lido relatórios – casos do inicio das operações especiais, mais de cinquenta anos atrás, quando eles ainda tentavam interrogar vampiros. Pessoas transformadas apenas algumas semanas antes – vampiros inexperientes, presa fácil para caçadores – se recusavam veementemente a falar, como se fossem parte do clã noturno há décadas em vez de dias. Às vezes a polícia tentava um apelo emocional, trazendo para a delegacia um parente do “falecido”. Os jovens vampiros se contorciam e desviavam o olhar, como se ver seus antigos entes queridos fosse a coisa mais desagradável que poderia lhes acontecer depois de serem expostos ao sol. Era como se as personalidades tivessem sido invertidas completamente num período muito curto.

 Mas Daisuke já era um vampiro há mais de um ano e ainda era… ele mesmo. Além disso, sem poder beber qualquer sangue além do de Haruka, ele não era um perigo em potencial para a humanidade.

 — Então, chefe, o que posso fazer por você?

Técnicas Sanguíneas estará de férias até 09/01/2023, mas vejo vocês semana que vem

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