Técnicas Sanguíneas - Capítulo 6

A dor, ela dói, sabe?

Eu sempre fico triste escrevendo as interações do Daisuke com os caçadores de vampiros.

Agora passamos da metade de "Noites sem fim", e o ritmo da história deve acelerar um pouco. (Mas não muito, essa sempre vai ser uma história sobre o cotidiano do Daisuke, e a vida dele não é um anime de lutinha)

Também gostaria de avisar que após o capítulo sete farei uma pausa. Talvez envie uma edição de Natal da newsletter falando sobre meus projetos para o ano que vem, mas Técnicas Sanguíneas só volta na segunda-feira dia 09/01/2023.

Banner de fundo vermelho escuro, com vinhas e flores douradas, e o título "Técnicas Sanguíneas" em uma fonte serifada, vermelha com efeitos metálicos, meu nome em baixo na cor branca (A. C. Dantas)

Aviso de conteúdo:esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica.

Capítulo 6

 Daisuke ligou novamente na noite seguinte, e de novo algumas noites depois, e mais uma vez na semana que se seguiu, mas esse foi o seu limite. Depois disso a necessidade de simplesmente conversar diminuiu e ele finalmente começou a se incomodar com o fato de que suas conversas eram monitoradas. Isso, e o fato de que ele não tinha mais nada a dizer sobre os seus captores vampíricos. Queria tanto ter uma conversa que não revolvesse ao redor de Akihito e Haruka, mas Charlotte continuava não falando da família e não parecia no humor para pequenas reflexões como “será que sereios tem nojo de camarões igual humanos tem nojo de baratas?” seguida por “Será que o DECEPA no litoral às vezes encontra sereios?”.

 Assim sendo, achava que essa quinta ligação seria o adeus definitivo.  

 — Dai? Você ainda está aí?

 — Ah… estou. Desculpa.

 — Você está quieto hoje.

 Não sabia ao certo como responder a isso. Decidiu mudar o foco da conversa.

 — Acho que eu cansei de falar de mim. Eu queria saber de vocês.

 Ele conseguiu ouvir quando Charlotte prendeu o fôlego, alarmada. Fingiu ignorância. Acima de tudo fingiu que não estava ofendido. Não estava perguntando “Eu quero saber os horários das patrulhas dos caçadores para poder interceptar vocês” e nem “eu quero saber o trajeto que você tem feito de volta pra casa para poder te sequestrar”. Depois de responder as perguntas extremamente específicas deles — “Que vampiros visitam o Akihito?”, “Quantos vampiros moram na mansão?”, “Você tem alguma estimativa de quantos moram fora?”, “Quantos segunda-classe e quantos terceira?” — achava que merecia pelo menos um pouquinho de confiança.

 Ainda houve uma demora razoável do outro lado da linha, mas finalmente Charlotte respondeu.

 — Bem, a copa tem uma cafeteira nova. Daquelas de cápsula. A maioria do pessoal prefere a cafeteira velha, mas a gente tem um revesamento para repor as cápsulas. A Carol só traz sabor capuccino, e o Wendell gosta de trazer uns sabores estranhos.

 — Tipo o que? — Daisuke perguntou, e não teve que fingir empolgação. Era exatamente esse o tipo de conversa do qual sentia falta.

 — Café com toque de maçã verde. Capuccino de chocolate branco. Café com pimenta.

 — E são bons?

 Café não fazia mais efeito para Daisuke. Essa fora uma das bebidas que testara com Hana. Independente do horário ou quantidade que bebesse, o café não deixava Daisuke mais desperto ou energético. Sem essa função, fora forçado a admitir que não tinha muito apreço pela bebida. Charlotte pelo visto também não, e por isso encarava os sabores novos como uma surpresa agradável, mas aparentemente os “puristas do café” achavam os sabores que Wendell trazia uma espécie de heresia.

 Charlotte contava histórias muito bem. Quando ela terminou de narrar a epopeia do café, Daisuke estava rindo. Percebeu que era a primeira vez em um longo, longo tempo.

 — Charly… obrigado. Eu precisava disso. Na verdade, eu acho que eu liguei para conseguir exatamente isso. Então obrigado. Mas eu acho que a inteligência não vai gostar de ficar filtrando horas e horas de gravação só pra ouvir as suas histórias. Eu deveria ir. E… hmm… não sei se vou ligar de novo tão cedo.

 Esperou que ela dissesse alguma coisa. Estava quase desistindo quando ouviu um barulhinho ritmado. Era bem baixo, mal viajava pelo telefone, e Daisuke não tinha certeza se um humano seria capaz de ouvir.

 Era código Morse. Charlotte era boa nisso, uma espécie de hobbie entre ela e o marido, para trocar mensagens à mesa de jantar que eles não achavam apropriadas para os ouvidos do filho. Daisuke aprendera o alfabeto, mas só sabia reconhecer com prontidão o padrão de “SOS”. Não era isso que Charlotte estava batucando agora.

 “Duas palavras. Seis letras?” Tentou desesperadamente memorizar o padrão antes que a linha caísse. Traço traço, ponto. Uma coisa longa que ele não tinha certeza se eram duas letras ou três. Ponto traço ponto ponto ponto ponto. Traço traço ponto. E a última letra era A. Charlotte desligou, e Daisuke teve o resto da noite para brigar com seus parcos conhecimentos. Não tinha mais celular para uma consulta rápida à internet, e naquele horário as lan-houses estavam fechadas.

 Munido de um graveto para rabiscar o chão do parque, Daisuke demorou até quase o amanhecer para relembrar o alfabeto e completar as lacunas.

 ME LIGA.

 ***

 Daisuke esperou três noites antes de ligar, duas para ficar quietinho em casa, antes que alguém achasse que estava passando mais tempo que o normal fora, e uma para o caso de decidirem segui-lo. Jurava que não era tão paranoico na sua época de caçador.

 “E olha onde isso me trouxe”, pensou com amargura. Se a desconfiança era parte intrínseca de se tornar um vampiro, não achava que era uma parte ruim.

 E por isso mesmo não tinha certeza do que esperar ao ligar no número pessoal de Charlotte.

 — Charly?

 — Daisuke! Eu comecei a achar que você não ia ligar!

 — Eu tento manter as aparências.

 — Ah-ham. — ela assentiu. Depois hesitou.

 — Se for melhor, eu posso ligar outro horário.

 — Não, não… não e isso, é que… Dai, a gente devia marcar de se ver!

 “O quê?” ele olhou para o bocal do telefone público, em choque. “Não não não não! Isso é...”

 — Charly, isso é contra as regras da polícia!

 — Que se danem as regras, Daisuke! Nós fomos parceiros por seis anos. Todo esse tempo salvando a vida um do outro deveria dar pra gente o direito de ter pelo menos uma conversa decente, nem que seja a nossa última.

 Daisuke começou a puxar a corrente da dog tag de caçador numa espécie de tique nervoso. Era natural que Charlotte estivesse disposta a encontrá-lo pessoalmente apenas uma vez. Só porque ele sabia que não era perigoso, não significava que era sábio para a caçadora acreditar na palavra dele. E ela tinha que pensar em seu emprego. Daisuke esperava que fosse só isso, e não uma desculpa para meter uma bala amaldiçoada entre os olhos dele. Alguns caçadores na força tarefa pareciam achar que estavam redimindo os vampiros quando atiravam na cabeça deles com uma dúzia de balas amaldiçoadas. Ele e Charlotte costumavam achar tais caçadores uns esquisitões, mas quem poderia dizer se ela não havia passado para esse lado depois que ele fora capturado? Perder um parceiro podia ser uma experiência traumática.

 — Vamos nos encontrar no Stravo’s. É uma loja noturna no território neutro.

 “Loja noturna” era como chamavam qualquer estabelecimento no qual os donos sabiam que parte da sua clientela era de vampiros… e não se incomodavam com isso. Desde que não houvessem mortes ou brigas, tanto caçadores quanto vampiros podiam frequentar o restaurante livremente.

 E Daisuke acabou aceitando.

 ***

 O Stravo’s era mais uma lanchonete chique do que um restaurante propriamente dito. A fachada com uma placa platinada felizmente escapava do clichê das luzes neon, mas o interior seguia quase à risca o design da Lanchonete Platônica do Mundo das Ideias: um cômodo retangular, com mesas dispostas ao longo dos lados maiores, e um balcão ao fundo para o bar. Piso preto e branco. Jukebox.

 Daisuke entrou, estranhando o ato de usar a porta da frente em vez de entrar pelo telhado ou janela. A verdade é que o estabelecimento não tinha rotas de fuga fáceis que o vampiro pudesse utilizar caso o reencontro dramático tivesse uma repentina guinada homicida.

 “Homicida”. Não conseguiu evitar um sorriso enviesado. Quando matava vampiros trabalhando no DECEPA era cumprimento do dever ou proteção de inocentes. Mas agora que ele era uma das malditas criaturas, era homicídio.

 “Patético.”

 Localizou Charlotte imediatamente. Ela ainda vestia — ou já vestia, dependendo dos horários erráticos dos caçadores de vampiros — o uniforme da corporação. Daisuke achou que ela parecia mais séria, e isso delineava o rosto forte e elegante dela. Como ele tinha sentido a sua falta!

 E no entanto ela estava tão tensa que ele sabia que seria má ideia tentar abraçá-la.

 — Ei.

 — Ei.

 Se cumprimentaram e ficaram sem saber muito bem o que dizer. Uma garçonete os tirou do desconforto imediato ao aparecer para oferecer o menu. Charlotte passou pelos pratos principais e lanches sem nem olhar. Estava nervosa demais para comer. Parou na seção de bebidas. Uma dose de alguma coisa forte parecia ser adequada para a ocasião, mas ainda tinha um turno para cumprir hoje.

 — Eu vou querer um milkshake de chocolate deluxe.

 — Dois. — Daisuke acrescentou, antes que a garçonete se afastasse.

 Charlotte o olhou de forma questionadora.

 — Você pode beber coisas normais?

 — É engraçado. Chocolate ainda tem gosto de chocolate. Só não é mais “comida”. Não enche o estômago, não é nutritivo, mas dá uma enganada por uns minutos.

 — Como um chiclete.

 Daisuke deu uma risadinha. Foi pequena e reprimida, mas foi boa. A sensação de acolhimento ao participar desse ritual tão humano de contar piadas entre si foi o suficiente para que ele parasse de se preocupar com a possibilidade de terminar a noite com uma bala na testa.

 Deixaram um silêncio confortável se estender entre eles.

 — Sinto muito, Charly, mas você vai ter que pagar pelo meu milkshake. Eu absolutamente não tenho dinheiro.

 Foi a vez dela rir  

 — Por que raios você pediu um, então?

 — Me faz lembrar de épocas melhores na minha vida. E... porque eu estou nervoso.

 — Eu… também estou. Eu ainda não consigo processar o fato de que você é um vampiro, Dai. Qual é a sensação?

 Ela até tinha feito uma ou duas perguntas a respeito do assunto, mas o contato visual tornava tudo diferente. Então Daisuke contou a ela.

 Ele contou sobre como a fome e a sede haviam se tornado uma coisa só, e sobre como começava na garganta e descia para o estômago e se espalhava pelas veias. Sobre como o nascer do sol o deixava impossivelmente — sobrenaturalmente — sonolento e como tudo o que o sol tocava cheirava queimado. Ele contou a ela sobre como ele sentia o cheiro do sangue das pessoas como um perfume fraco, como cheirava tão desejável… e como iria machucá-lo se ele tentasse beber.

 — É verdade que mordidas de vampiro não doem?

 A pergunta pegou Daisuke de surpresa.

 — Eu não sei. Eu só fui mordido duas vezes, e as duas doeram. Mas em ambas as ocasiões eu quase morri, não sei se isso afeta a maneria como a mordida é percebida.

 — E as vezes que você mordeu alguém?

 — Eu não faço isso.

 Charlotte estranhou.

 — Nunca?

 — Eu falei, eu não posso beber sangue das pessoas em geral.

 — Mas pra beber o sangue da Haruka…

 — Ele morde o próprio braço. Não, eu não tenho ideia de porque ela faz isso.

 — Então você nunca… cravou as presas no pescoço de alguém?

 Ele odiava o fascínio incontido quando ela dizia “cravou as presas”.

 — Bom, teve uma vez. Numa briga.

 Contou rapidamente sobre a animosidade que alguns membros da gangue de Akihito nutriam por ele, e sobre como a vez em que fora atacado… e como acabara reagindo. Interrompeu o relato antes de chegar na parte em que era salvo por Haruka. Charlotte não exigiu o fim da história, pelo que ele era grato. Infelizmente, não achava que a ex-parceira o fizera por consideração. Ela simplesmente continuava focada em outro assunto.

 — O que você acha da gente testar?

 — Testar o quê?

 — Se mordidas de vampiro doem!

 Era o que ele temia. Suspirou.

 — Charly, você está mesmo, de verdade, me pedindo para te morder?

 — Você não quer?

 O erro dele foi hesitar antes de responder. Ele estava pensando que tê-la tão próxima a fazia cheirar muito bem, e que não era tanto uma questão de “não quero” quanto de “não posso”, mas ela tomou sua hesitação como um sinal de desejo.

 — Vamos. Eu confio em você para parar antes que a coisa fique séria.

 “Bom, eu não.” Daisuke pensou, mas sem muita convicção. Após a sugestão, o cheiro do sangue de Charlotte parecia até mais forte. Droga.

 — Tá, estende o braço.

 — Você não prefere o pescoço?

 — Eu não sei o que eu prefiro, Charly. Eu sempre bebo do braço da Haruka. Eu não sei se mordendo o seu pescoço eu não ia pegar uma veia importante e você acabaria sangrando demais.

 Então Charlotte estendeu o braço e Daisuke seguiu as veias do pulso dela até quase a altura do cotovelo. Mordeu ali.

 A sensação de cravar as presas em alguém era maravilhosa, ele percebeu com uma mistura de prazer e horror. E quando o sangue de Charlotte veio foi diferente das suas experiências com Haruka ou o outro vampiro. Ao provar o sangue de Charly finalmente entendeu qual era o gosto de sangue fresco. Sangue de vampiro era estagnado. O de Haruka nem tanto, mas, ainda assim, era carregado com alguma coisa que deixava o gosto rico, forte. Sangue humano, por outro lado, era fresco e limpo e energizante.

 Daisuke percebeu que Haruka o havia condicionado bem: após beber uma certa quantidade de sangue, ele se afastou por conta própria. Ele o fez por reflexo, e chegou a pensar em se inclinar de novo para beber um pouco mais, mas caiu em si ao ver a expressão da amiga. Tão aliviada por ele ter parado, incapaz de esconder o medo que sentira durante o ato.

 — Desculpa. — ele disse com a voz suave — Doeu?

 — Não. E exatamente por isso foi a coisa mais assustadora que… — ela parou no meio da frase quando Daisuke se dobrou de dor, segurando o estômago. — Dai?

 — Eu falei… que só podia beber o sangue da Haruka… isso não vai ser legal…

 E então ele vomitou sua última refeição no chão da lanchonete, apenas metade escondido sob a mesa. Era sangue. Vermelho escuro e viscoso. Claro que era sangue — ele era uma droga de um vampiro. Na verdade ele vomitava mais sangue do que o que tinha acabado de consumir. Houve uma pausa, então uma segunda onda de náusea, então uma pausa maior e uma última onda. O gerente veio limpar a bagunça pessoalmente. O estabelecimento aceitava vampiros bebendo sangue nas premissas, mas vomitar sangue por todo o chão era uma história completamente diferente, e o gerente olhava de Daisuke — que suava e estava pálido e abalado — para Charlotte — que também parecia nauseada — como se procurasse alguém para culpar.

 Quando tornaram a ficar sozinhos Daisuke já conseguia parecer bem mais calmo.

 — Isso acontece toda vez que… ? Você sabe.

 — Não é como se eu tivesse feito isso muitas vezes. Essa é a segunda. A primeira vez foi ruim o bastante pra eu não querer repetir a experiência. Eu te disse: eu só posso beber o sangue da Haruka.

 Ela assentiu, e manteve a cabeça baixa.

 “Pelo menos agora você acredita em mim.” Começou uma linha de raciocínio alegre na qual o testemunho de Charlotte faria os outros caçadores de vampiro pararem de considerá-lo um alvo. Sua reflexão foi interrompida ao notar uma coisa.  

 — Charly, você não quer colocar uma bandagem nessa ferida?

 Ela estendeu o braço, surpresa. As quatro perfurações deixadas por Daisuke ainda estavam lá, sangrando devagarzinho.

 Ela produziu de suas coisas um rolo de esparadrapo e gaze. Tão preparada… poderia ter sido escoteira. Daisuke a ajudou a atar a bandagem.

 — Sinto muito por te forçar a fazer isso, Dai. — e, depois que ele apenas assentiu – Mas, espero que você não se importe se eu perguntar… qual era o gosto?

 — Pra falar a verdade, bom. Foi a primeira vez que eu bebi… sangue humano. — olhou para ela — O cheiro ainda é ótimo, mas como eu sei o que vai fazer comigo, confesso que me deixa um pouquinho enjoado. Se eu não estivesse completamente seco acho que vomitaria de novo.

 Silêncio.

 — O que você vai fazer, se não pode tomar sangue humano?

 — Vou ter que pedir pra Haruka. Torcer pra ela não perceber o quanto eu estou sem sangue.

 — Ela… ela vai fazer alguma coisa se descobrir?

 Não é como se você pudesse sair por aí bebendo qualquer sangue, e eu não vou te alimentar se você não for educado.

 Daisuke deu de ombros.

 — Eu confesso que não gostaria de descobrir.

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