Técnicas Sanguíneas - Capítulo 2

Então... vocês curtiram a última edição? Estamos em temporada de NaNoWriMo, e quero muito aproveitar o espírito de loucura coletiva da estação para dar uma adiantada em outros projetos. Estou pensando se vale a pena falar sobre essas amenidades antes de cada capítulo, se é melhor colocar elas no finzinho, ou até mesmo enviar edições extraordinárias em outros dias da semana.

Em todo o caso, fiquem com o meu fiozinho do Twitter sobre o NaNo!

Ainda vou pegar o jeito de ficar fazendo suspense sobre Técnicas Sanguíneas - aquele esquema "no último capítulo aconteceu tal coisa! o que será que vai acontecer hoje???" - mas ainda acho que está cedo pra isso.

Por mais que eu tenha me esforçado com o texto, sei que ele não é perfeito, e antes de lançar uma versão final em ebook há muito espaço para melhoras.

Fiquem aqui com o capítulo dois.

Aviso de conteúdo: esta é uma história de vampiros. Sangue e gente escrota manipuladrora são esperados. Para conseguir o que querem, vampiros vão recorrer a técnicas de coerção e manipulação variando desde gaslighting, ameaças, e violência física e psicológica.

Capítulo 2

— Senhor Daisuke, a senhorita Haruka me mandou levá-lo para conhecer a casa.

— Senhor Daisuke, você não vai ver a senhorita Haruka?

— Senhor Daisuke, o senhor precisa de alguma coisa?

Toda noite uma mulher diferente aparecia em seu quarto: para limpar, para verificar a condição dele, para transmitir um recado de Haruka. Queria que elas não viessem. Toda vez que uma delas entrava no quarto, conseguia sentir uma mudança no ar. Estava reagindo ao cheiro do sangue. E a cada dia (noite) ficava pior. Tirando a primeira noite, quando Haruka o chamara explicitamente, e a segunda noite, quando uma moça alta de maquiagem lhe mostrara a casa, não havia saído do seu quarto. Talvez, pensou, se mantivesse a mente ocupada fosse mais fácil ignorar a fome crescente.

— Qual é o seu nome? — Ele perguntou à moça que apareceu para limpar o quarto. Era a mesma que falara com ele na primeira noite.

— Hana, senhor.

— Não precisa me chamar de senhor. Eu não sou tão velho assim.

Ela não chegou a sorrir, sua expressão assumindo mais um tom de desculpas. Provavelmente ia continuar a chamá-lo de “senhor”. Daisuke suspirou.

— Hana, aquela moça me mostrou a casa já faz uns dias, mas eu confesso que não lembro onde ficam as coisas. Você tem tempo para me mostrar?

— Claro, senhor Daisuke. Você está procurando algum lugar em particu…?

— Quantos humanos trabalham aqui?

— Eu não sei dizer exatamente…

— Eu não preciso de um número exato, só uma estimativa. — Como Hana não respondeu, ele continuou. — É que eu estava pensando… vocês moram aqui? A casa é enorme, então com certeza vocês poderiam… mas o vampiros também não moram todos aqui? Isso é seguro?

Finalmente Hana sorriu.

— Nem todos os vampiros moram aqui. Alguns tem casas separadas na cidade. E só o staff noturno mora na mansão. O resto dos empregados volta pra casa de noite.

A explicação causou mais perguntas do que respostas, então Hana contou a ele como o grupo de Akihito ia acumulando dependentes ao longo dos anos: velhas viúvas que não tinham a quem recorrer quando seu único filho era transformado em vampiro, irmãos mais novos, às vezes esposas e filhos. Para alguns deles Akihito arranjava funções: pessoas para limpar a mansão, cuidar do jardim, gerenciar pequenos negócios. Com o tempo, alguns se desvinculavam do grupo e iam seguir suas vidas. Outros continuavam, talvez uma mistura de hábito e lealdade. Antes de vir para a Cidade Alfa, a gangue de Akihito passara 50 anos na Coreia, e antes disso tinham sua sede em Hong Kong.

— Minha avó era chinesa. — Hana contou. — Meu avô já trabalhava para a família do mestre Akihito, mas nunca quis ser um vampiro. E ele conheceu a minha avó, e se apaixonou, e ela virou uma das camareiras da senhorita Haruka. Eles morreram quando minha mãe era bebezinha, e logo depois a gangue se mudou pra Coreia.

— Você nasceu lá?

Hana assentiu.

— Então, sua mãe era descendente de chineses e japoneses… e o seu pai?

— Ele era de uma das famílias que acompanham o mestre Akihito desde o começo. Ele era primo da senhora Kiku. — Ela fez uma pausa, esperando para ver se Daisuke reconhecia o nome. Ele tinha a impressão de ter visto uma velhinha com esse nome entre as criadas da cozinha, mas como ela não falava uma palavra sequer em português, Daisuke não havia interagido muito com ela. — Mamãe disse que ele virou um vampiro, mas ele não devia ser muito bom nisso. Ele morreu pouco tempo depois.

— Eu sinto muito.

Hana deu de ombros.

— Os homens acabam quase todos assim. O único jeito de um homem viver até uma idade avançada é formar uma família e cuidar de um dos negócios paralelos do senhor Akihito, porque os vampiros novos morrem muito rápido… — ela parou, olhando aflita para Daisuke ao perceber o que tinha acabado de dizer.

Ele sorriu para tranquilizá-la. É claro que não queria morrer, mas estava decidido a não beber sangue e não se envolver nas politicagens dos vampiros enquanto tivesse uma escolha. Não ia viver muito de qualquer forma.

— Mas então, — disse para mudar de assunto — Akihito nunca transforma as mulheres em vampiras?

A resposta para isso era “aparentemente não”. Até aí, as gangues de Wilson e Agonglô também eram notadamente dominadas por homens. A gangue de Weiss tinha um pouco mais de presença feminina, mas apenas a família de Constantino tinha uma proporção de fato equilibrada. A falta de presença feminina nas gangues podia ser tanto uma forma de cavalheirismo quanto de machismo. Era difícil traçar uma linha entre os dois.

Continuaram o tour pela casa. Em vez das áreas sociais que a garota anterior lhe mostrara — Hana informou que aquela era Yu Jun — Daisuke pediu para ver a cozinha, a lavanderia, os corredores secundários que a criadagem usava para evitar contato direto com os vampiros.

“Por que você faz isso consigo mesmo, Daisuke?” Ele se perguntou quando Hana concluiu o tour e o deixou de volta em seu quarto. Ele não queria frequentar os mesmos espaços que a gangue de Akihito, e foram esses lugares que Yu Jun havia lhe mostrado, por isso pedira que Hana lhe mostrasse algo diferente. Havia esquecido que seu objetivo primário era não pensar na sede, e ao passar por todos os lugares frequentados pelos servos humanos, acabara sentindo o perfume residual do sangue. No seu quarto, que permanecera vazio por sabe-se lá quanto tempo e agora abrigava apenas ele mesmo, um vampiro, não havia cheiro algum. Mas nos lugares onde muitos humanos passavam um longo período trabalhando o ar era notadamente diferente.

Daisuke prometeu a si mesmo que não seria tão tolo no futuro. Tentou se distrair, mas evitando os humanos na casa. Mesmo que isso significasse frequentar os mesmos lugares que os vampiros.

Contar os vampiros deu a Daisuke uma tarefa que o manteve ocupado por várias noites. Como queria ter tido acesso a esse tipo de informação durante seus dias de caçador! A maioria da gangue falava japonês, mas prestando atenção nas interações em busca de pistas da hierarquia Daisuke começou a identificar quem eram os de segunda e terceira classe. Achava que já tinha encontrado de passagem metade do grupo. A outra metade devia estar espalhada por esconderijos secundários ao longo do território. Eventualmente gostaria de descobrir a localização destes.

Hana mencionara que Akihito já tivera sua base de operações na Coreia, e antes disso em Hong Kong. Daisuke identificara apenas dois vampiros chineses, que supôs serem da época de Hong Kong. Isso explicaria a posição de senioridade que pareciam ocupar, afinal teriam quase cem anos. Os vampiros coreanos estavam mais espalhados entre o alto e o baixo escalão. Alguns deles eram definitivamente jovens — talvez membros de famílias humanas que acompanharam a gangue durante a mudança e haviam sido transformados apenas recententemente. Os japoneses eram maioria, e em média mais velhos que os outros, mas era difícil dizer se algum deles era da época anterior a Hong Kong. Daisuke sabia separar os que eram vampiros a apenas uma ou duas décadas dos que passavam de cinquenta ou sessenta anos, mas os vampiros mais velhos do que isso lhe pareciam iguais: igualmente ameaçadores e inalcançáveis.

A gangue de Akihito já estava no ocidente há oito anos, então alguns rostos ocidentais já haviam começado a fazer parte da gangue: um rapaz caucasiano, dois hispânicos, um dos quais parecia muito jovem, um rapaz negro de pele clara. Ele sabia que esses eram parte da gangue, e não visitantes, porque estavam sempre acompanhados de um vampiro mais velho que lhes murmurava instruções sobre como se comportar na mansão. Daisuke gostava desses momentos, porque os novos integrantes da gangue ainda não falavam japonês, e tinham que ser instruídos em português. Pelo que conseguia deduzir, fora da mansão a maioria dos vampiros adotava a língua local ou alguns sua língua natal, mas dentro da mansão Akihito instituíra o japonês como língua oficial.

Daisuke não fez nenhuma tentativa de aprender. Quando era mais novo havia flertado com a ideia, querendo uma proximidade maior com sua herança cultural, mas não se dedicara o suficiente ao projeto. Agora que fora transformado em vampiro contra a sua vontade, se recusava a aprender japonês para agradar seus captores. Além disso, ninguém estava exigindo isso dele. Os vampiros de Akihito não falavam com ele, apesar de uma ou outra conversa sussurrada quando passava indicar que ocasionalmente falavam sobre ele. Não precisavam sussurrar, não era como se ele entendesse japonês. E Daisuke continuava evitando a criadagem humana, então ele não tinha com quem conversar. Era só ele e seus pensamentos, toda noite, a noite toda.

A fome — ou sede, Daisuke não tinha mais certeza de como chamá-la — estava começando a afetá-lo. Identificar os vampiros da gangue estava ficando cada vez mais difícil. Começava a esquecer quem já havia visto, e perdia o foco enquanto entreouvia conversas. Estava tendo dificuldade para acordar, e às vezes ainda estava no quarto quando uma das moças chegava para limpar. Quanto mais fome sentia, mais forte parecia ficar o cheiro do sangue pulsando nas veias delas. Uma noite se pegou salivando enquanto encarava Yu Jun.

“Eu prefiro morrer do que fazer alguma coisa pra machucar essas mulheres.” Lembrou a si mesmo com agressividade quando percebeu o que estivera fazendo, mas era tarde demais. Yu Jun também reparara em como ele estava olhando pra ela. Os movimentos da moça ficaram um pouco mais bruscos, a expressão dela apreensiva, e mesmo o cheiro do ar havia mudado. Daisuke se levantou bem devagar, saiu do quarto e fechou a porta deslizante atrás de si. Contou até dez e ouviu a garota suspirar.

Ele se sentiu um monstro.

Depois disso, muitas das garotas mais novas pararam de aparecer para a limpeza dos quartos naquela parte da casa. Daisuke não as culpava. De fato, queria que as mulheres mais velhas desaparecessem também, removendo de vez a tentação, mas, ou elas tinham mais confiança no autocontrole dele, ou davam menos valor à própria vida, pois toda noite uma delas estava lá para varrer e encerar o chão e trocar sua roupa de cama. De forma geral, as senhoras mais velhas também falavam menos português, então, entre a barreira de idioma, a diferença de gerações e o fato que o cérebro de Daisuke vivia num estado de confusão e irritação perpétuas, não houveram muitas tentativas de conversa.

— Senhor Daisuke, você parece muito abatido. Por que não vai ver a Senhorita Haruka?

Hana era a única das jovens que não havia trocado de turnos com uma mulher mais velha, e se não fosse por ela as noites de Daisuke passariam em completo silêncio. Exceto que Hana não oferecia tópicos muito interessantes para conversa.

— Senhor Daisuke, quando foi a última vez que você se alimentou?

— Senhor Daisuke, o senhor não está com fome? Você não pode ficar assim! A Senhorita Haruka disse que você devia procurá-la.

Após algumas visitas com tentativas infrutíferas de conversa, Hana desistiu de instá-lo a procurar Haruka. Quando fazia isso, Daisuke se recusava a falar pelo resto da noite. Ela tentou outra abordagem.

— Senhor Daisuke… eu sei que a Senhorita Haruka falou que você devia ir até ela quando estivesse com fome… mas se você não quer vê-la… o senhor podia tomar um pouco do meu sangue.

Daisuke olhou pra ela como se a moça tivesse crescido uma cabeça a mais. Demorou um segundo até recuperar a voz e dizer, um pouco mais áspero do que planejava:

— Eu não vou beber sangue.

Hana abaixou os olhos, pela primeira vez apreensiva na presença de Daisuke. E ainda assim ela não exalava aquele cheiro pungente de medo que os instintos vampiros o ensinaram a identificar. Isso fez com que Daisuke se acalmasse. Tentou pensar em alguma coisa gentil para dizer, mas Hana falou primeiro.

— Nesse caso… será que eu não posso ao menos… trazer outra coisa? Um copo d’água, talvez?

A surpresa foi tamanha que Daisuke gaguejou por vários segundos antes de responder.

— Eu posso beber água?

— Bom… acho que sim. Só que não vai realmente ajudar. Seria mais para você se distrair um pouco?

Daisuke não sabia muito sobre vampiros. Quer dizer… conhecia seus hábitos e territórios o suficiente para caçá-los… mas não sabia muito sobre ser um vampiro. Havia notado algumas coisas durante seus… parou. Havia perdido a noção dos dias. Duas semanas com certeza haviam se passado, mas será que já se passara um mês? O choque ajudou a clarear os pensamentos de Daisuke. Sabia que mais cedo ou mais tarde um vampiro iria morrer de sede, mas não tinha a menor ideia de quanto tempo levaria até que isso acontecesse com ele. Reconhecia que havia o risco da fome extrema torná-lo irracional, ele acabar se alimentando de alguém à força, e o ciclo se reiniciar. Mas não havia comido ou bebido nada desde que fora transformado, e ainda não havia perdido o controle. Talvez… apenas talvez… conseguisse se manter são.

Independente do que acontecesse, tinha certeza que se sairia melhor se conseguisse manter a mente ocupada. E por que não se ocupar descobrindo um pouco mais sobre a própria condição de vampiro?

— Quer saber? A gente podia descobrir juntos.

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