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Técnicas Sanguíneas - Capítulo 1
AAAAAAAA eu não acredito que estamos aqui! É o lançamento de Técnicas Sanguíneas!!! Esse é um momento super importante pra mim, essa história habita a minha cabeça mais ou menos desde 2016, e eu estou só aquele meme do
"Coisas que escritores tem medo:
que ninguém leia a história deles
que alguém leia a história deles"
Mas vamos nessa.
Ainda estou aprendendo a lidar com essa coisa de narrativa seriada, então aprecio todos os comentários que vocês quiserem deixar sobre o ritmo da história, carisma (ou falta de carisma) dos personagens, reações e expectativas sobre os eventos da história.
Hoje a ansiedade é tanta que estou enviando a newsletter de manhãzinha, mas as edições futuras vou deixar para enviar de noite, ok?
Caso você tenha chegado aqui sem ler as edições anteriores ou sem me acompanhar no Twitter, seguem algumas informações inportantes sobre Técnicas Sanguíneas
Sinopse, capa e aviso de conteúdo
Um departamento secreto da polícia lida com ameaças sobrenaturais sem o conhecimento do público. Caçador de vampiros há oito anos, a vida de Daisuke vira de ponta cabeça quando uma vampira puro-sangue decide capturá-lo e transformá-lo. Agora ele precisa aprender a lidar com a sede de sangue, e descobrir o que sua criadora deseja dele.
Técnicas Sanguíneas é uma história de vampiros, então espere por sangue e gente escrota. Vampiros puro-sangue vão usar de tudo para conseguir o que querem: ameaças veladas ou não, gaslighting, abuso físico e psicológico, poderzinho de manipulação mental. Não tem tudo isso o tempo todo - eu não aguentaria escrever uma história assim - mas não quero que seja uma surpresa quando aparecer.
E agora, sem mais delongas...
Parte Um – Noite sem fim
Capítulo 1
Daisuke acordou sentindo o corpo todo queimar. Estava com sede.
Sentou-se com dificuldade, com planos de levantar e pegar um copo d’água. Notou o futon onde estivera deitado e por um segundo, um pacífico e precioso segundo, achou que estava na casa da avó. Mas sua bachan havia falecido há muitos anos e, mesmo as casas no interior do Brasil sendo em geral maiores que os apartamentos apertadinhos das capitais, ela nunca morara numa casa com um quarto tão grande.
Ou tão japonês. Daisuke achava que a casa de seus pais ter um espaço para tirar os calçados antes de entrar já era um exagero para netos de imigrantes, mas o quarto onde estava parecia saído de um anime!
“E não qualquer anime. Um daqueles com uma família rica e super… tradicional...”
E finalmente os eventos da noite anterior retornaram à sua memória: a operação no galpão abandonado, a emboscada, os corpos dos outros policiais, sua captura.
Lembrava de estar apenas levemente consciente quando os vampiros começaram a beber seu sangue. Tinha a impressão de que haviam se alternado para fazê-lo. Sua cabeça começara a girar e latejar, mas eles não haviam parado: eles beberam até o corpo de Daisuke começar a encontrar novas maneiras de protestar a perda de sangue. E quando ele estava à beira da morte, abatido demais para se importar com qual vampiro era qual, braços esguios o seguraram de uma maneira surpreendentemente reconfortante, e alguma coisa de gosto estranho foi pressionada contra seus lábios.
— Beba. — A voz dissera, irresistível, e ele não precisou de uma segunda opinião para se convencer. Começou a beber. O gosto parecia tão familiar, mas ao mesmo tempo alguma coisa que ele nunca havia provado. Mas, acima de tudo, a bebida tinha gosto de salvação, de não estar mais morrendo. Uma vez que o perigo passara, o sabor adocicado o lembrou que estava faminto.
Inconscientemente estendeu as mãos para segurar a fonte do que quer que estivesse bebendo, e ficou surpreso ao encontrar o braço de uma mulher. Antes que pudesse entender a situação, a mulher segurou seu ombro com a outra mão, afastando-o delicadamente, mas com uma força implacável. Ao soltar o braço dela, Daisuke viu as marcas de mordida bem no lugar do qual ele estivera bebendo.
— Por enquanto isso é o suficiente. — a vampira disse. Ela usava um kimono cerimonial completo.
Uma família rica e super tradicional.
Uma gangue de vampiros viera do leste asiático alguns anos atrás, e perturbara o equilíbrio delicado das gangues da Cidade Alfa. Os vampiros de segunda e terceira classe precisavam se disfarçar entre a população local, mas quando os puro-sangues se dignavam a aparecer, eles podiam ser dar o luxo de ser tão únicos e espalhafatosos quanto desejassem.
Ela devia ser a irmã de Akihito, Haruka.
Sacudindo as mangas do kimono para cobrir as quatro marcas de perfuração, ela continuou:
— Mas eu vou te alimentar de novo, se você me pedir com educação.
Mesmo semimorto, Daisuke se lembrava de tê-la visto uma vez. Estava com Charlotte num shopping, na área neutra, antes de começarem sua ronda. Naquela ocasião a vampira vestia um jeans e uma blusinha de renda, óculos escuros e o cabelo preso num coque folgado. E carregava a maldita câmera fotográfica.
De alguma forma, de cabelo solto e roupas tradicionais japonesas, ela parecia muito mais jovem.
— É melhor deixar isso pra de noite. — O homem devia ser Akihito. Ele também usava roupas tradicionais japonesas. Sequer eram roupas tradicionais comuns, uma yukata de usar em casa, não. Eram camadas e camadas de tecido num kimono cerimonial. Elas pareciam deslocadas no meio do galpão industrial vazio.
Daisuke franziu a testa. Não podia ser o mesmo galpão onde fora capturado, certo? Do contrário o local estaria coberto de corpos.
— Eu sei, eu sei… — Haruka respondeu.
Antes que Daisuke conseguisse extrair mais alguma informação do ambiente, Akihito ergueu a porta de aço de enrolar. A luz do Sol entrou com intensidade total, trazendo consigo um cheiro de queimado e sobrecarregando os sentidos de Daisuke.
Ele desmaiou.
Durante o tempo que demorara para se lembrar de tudo isso, Daisuke sentiu o corpo inteiro queimar, como se a fome da noite anterior tivesse se espalhado por todos os membros.
“Ótimo. Eu fui transformado em um maldito vampiro.” Ele pensou, reconhecendo aquele latejar faminto como sede de sangue.
Agora o ambiente fazia sentido. For levado à base de Akihito. Se não lhe falhava a memória, uma mansão na zona sul. Daisuke duvidava que o vampiro tivesse encontrado uma residência tradicional japonesa à venda. Provavelmente mandara construí-la assim que decidira se mudar para a Cidade Alfa.
“Oito longos anos.”
Daisuke ainda era novo na polícia – a polícia comum, que os civis conheciam – quando algum tipo de crise que ninguém queria explicar se abatera sobre um outro departamento – um que não era conhecido do público, e que mesmo dentro da polícia era mencionado apenas em referências indiretas e sussurros conspiratórios. Um misto de curiosidade e vontade genuína de ajudar o fizeram se voluntariar para o outro departamento… e assim Daisuke havia se tornado um caçador de vampiros.
O Departamento de Contenção de Eventos Paranormais tinha um equipe multi-religiões dedicada a exorcismos, e até alguns especialistas em lobisomens, mas esses geralmente ficavam apodrecendo no escritório, ou muito raramente eram chamados para ajudar uma equipe de outra cidade. A verdadeira praga da Cidade Alfa eram vampiros. Os malditos sanguessugas se multiplicavam, davam festas e saíam à noite procurando vítimas ou brigas com a gangue rival. A chegada da gangue de Akihito desestabilizara as relações de poder que as quatro grandes gangues haviam mantido por décadas. Oito anos depois, a mesma gangue desestabilizava completamente a vida de Daisuke.
Ele suspirou. Ainda estava usando seu uniforme, suado, sujo e agora manchado de sangue que ele nem tinha certeza de quem era. Encontrou um par de jeans desbotados e uma camiseta branca dobrados ao lado da cama. Arrancou as roupas arruinadas e jogou-as direto na lixeira. Ao fazer isso, sentiu a corrente da plaquinha de identificação. Passou os dedos pelo metal. Não conseguia dizer se estava frio.
Daisuke Koyama, DECEPA Alfa City, DD-MM-AAAA, O+
Definitivamente não ia mais doar sangue.
Vestiu as roupas novas, desejando acima de tudo um banho, e então parou para pensar no futon. Nos animes as pessoas os enrolavam como um saco de dormir, ou apenas dobravam? Tinha a sensação de que era a segunda opção, mas antes que pudesse se decidir alguém bateu timidamente à sua porta.
— すみません、大輔さん?
Tudo naquela noite estava sendo tão estranho. O que eram oito anos para vampiros? É claro que a gangue de Akihito continuava falando japonês dentro de casa. Céus! Ele não falava japonês desde que sua bachan era viva! Mesmo naquela época não havia sido um estudante muito diligente. Conseguiu desenterrar a frase “eu não falo muito japonês”.
— Sinto muito! Posso entrar?
“Se você faz tanta questão...” a última coisa que queria era lidar com mais vampiros.
— Claro.
A jovem que entrou usava um kimono cor-de-rosa simples e começou a dobrar o futon de forma eficiente. Ela o guardou atrás de uma porta que Daisuke jurava ser uma saída, mas na verdade era um armário. Então se aproximou de Daisuke para recolher o lixo. Ela não pareceu se incomodar com as roupas manchadas de sangue, e mais de perto Daisuke conseguiu ver que ela não era tão novinha quanto imaginara a princípio. Jovem, mas definitivamente adulta. Ela usava um perfume suave que o agradava.
“Peraí…”
Não era um perfume. Era sangue. Tão mais discreto do que as histórias o fizeram esperar, mas o simples fato de conseguir sentir qualquer cheiro já era uma prova de que não era mais humano. A garota, no entanto...
— Você é humana?
— Sim, senhor.
Queria perguntar o que humanos faziam morando numa residência de vampiros, mas também queria que ela terminasse logo com sua arrumação e fosse embora. O quanto antes a fragrância de sangue vivo saísse do quarto, melhor.
— Senhor Daisuke, a senhorita Haruka mandou eu te levar ao quarto dela.
Haruka. A vampira puro-sangue que por alguma razão o escolhera para ser transformado. Daisuke e Charlotte não haviam visto quando a vampira havia tirado a fotografia, mas tinha sido naquela noite, no shopping. Por meses haviam encontrado cópias da foto de Daisuke nos esconderijos dos vampiros, e quando os membros da gangue de Akihito se recusavam a atacá-lo durante um confronto o motivo se tornara claro. O chefe havia considerado afastá-lo.
Daisuke queria não ter sido tão cabeça dura e aceitado.
— Tá, vamos acabar logo com isso.
Daisuke foi levado a um quarto enorme, decorado com as mais finas… tralhas. Ele não sabia de que outra maneira agrupar toda a decoração do quarto de Haruka: arranjos de flores, alguns bonsais, uma lança chinesa e um conjunto de três espadas japonesas, pinturas e tapeçarias, leques ornamentais, almofadas bordadas… era um quarto feito para manter o tédio longe de uma princesa superprotegida. E no centro, com seu kimono vermelho bordado em filigrana dourada, se sentava a própria princesa.
Se encontrar com ela, naquela noite, naquela circunstância, era bem diferente das vezes que tivera que falar com Constantino. Ele era o único dos vampiros puro-sangue que se dignava a conversar com a polícia. Tinham um acordo muito rígido no qual ele mantinha seus descendentes sob controle, e em troca os caçadores não interferiam nos assuntos deles. Às vezes, um membro da gangue de Constantino se envolvia em problemas. Quando isso acontecia, era sempre melhor mandar alguém para avisar Constantino pessoalmente. As relações com a polícia se tornavam muito menos pacíficas se ele descobrisse por conta própria e parecesse que o DECEPA estava encobrindo o caso. Ou, pelo menos, era isso que o Chefe dizia. A última vez que Constantino havia abertamente hostilizado a polícia fora há mais de vinte anos. Ainda assim, quando recaía sobre Daisuke o dever de informar ao velho vampiro que um membro de sua gangue fora morto, era sempre uma experiência estressante. Aquela sensação de confrontar um predador natural, fazendo o coração acelerar e a respiração vir em fôlegos curtos.
Diante de Haruka, sendo ele mesmo um vampiro, não sentia que estava diante do seu “predador natural”, mas continuava tendo o pressentimento de que ela era mais forte e rápida do que ele, e provavelmente capaz de quebrá-lo em dois se assim o desejasse. O que era estranho, para uma moça tão jovem num vestido florido que parecia passar seus dias tocando a harpa japonesa e costurando.
Outra diferença entre se apresentar diante de Haruka e seus encontros com Constantino era que, enquanto ele ainda era humano e caçador de vampiros, ele pertencia a uma organização que tinha o poder de retaliar em caso de violência contra seus emissários. Ninguém o vingaria agora. Estava morto para os caçadores de vampiros. Literalmente? Vampiros contavam como mortos-vivos, certo? Mas de qualquer forma o protocolo dizia que ele seria considerado como morto em ação. Haveria um funeral simbólico para consolar sua família. Eles não podiam saber que ele ainda estava por aí. Vampiros recém-transformados não pareciam se comover com a presença de familiares ou amigos. Eles só bebiam sangue e seguiam as ordens dos puros-sangues que os haviam transformado. Essa era a parte mais assustadora sobre encontrar Haruka: ser um vampiro de segunda classe feito pelo sangue dela.
“Eu me apresento diante da Criadora.” Ele pensou, com um misto de amargura e diversão. Cada puro-sangue na cidade parecia ter uma visão diferente da sua prole. Constantino se denominava um “pai”. Wilson agia como um simples “chefe”. Agonglô fazia questão da distinção de “criador”. Apenas alguns dias atrás Daisuke não achava essa uma visão natural do relacionamento entre duas pessoas. E agora fazia perfeito sentido.
— Olá, Daisuke. — Haruka falou, tirando-o da sua ponderação. — Fico feliz de vê-lo acordado e bem-disposto. Como você se sente?
“Com fome”, pensou, mas preferiria morrer do que admiti-lo em voz alta. Durante seus oito anos como caçador de vampiros ele nunca havia encontrado um que resistisse ao impulso de beber sangue humano, mas decidiu que enquanto ainda pudesse ser considerado são — em outras palavras, enquanto dor, sede e magia vampira não o enlouquecessem — ele nunca se rebaixaria a beber sangue.
Haruka não pareceu aceitar bem o seu silêncio. Adquiriu uma expressão amuada e murmurou alguma coisa sobre “sangue primário” e “assim é fácil”. Em voz alta disse:
— Seria uma boa ideia você responder quando eu falo com você. Você é minha prole, sabe. Não é como se você pudesse sair por aí bebendo qualquer sangue, e eu não vou te alimentar se você não for educado.
Para sua própria surpresa, Daisuke sentiu o pulso acelerar com raiva — mesmo que não fosse seu coração a bombeá-lo. Ainda assim, era sensato demais para provocá-la ou se envolver numa discussão acalorada. Não tinha esquecido daquele instinto que lhe dizia que Haruka era muito mais forte do que ele.
— Eu não planejo beber o seu sangue, nem o de ninguém.
Haruka deu um sorriso fraco.
— Eu duvido muito que você continue a pensar assim quando começar a ficar realmente faminto. Mas eu te disse: você não pode beber qualquer sangue. Depois de beber meu sangue, você só pode beber o meu sangue. Mesmo que você tente beber o de outra pessoa, você simplesmente não vai conseguir. E então você vai ter que vir até mim.
“Do que raios ela está falando…?” Nunca tinha ouvido falar de nada parecido, e até queria entender que tipo de ameaça era essa — porque o tom de Haruka era claramente uma ameaça — mas queria se afastar dela o quanto antes. Estava ficando sem paciência para respondê-la com educação. Foi direto ao ponto.
— Eu só vim para saber o que você quer de mim. Sabe… por que você me transformou em um vampiro e tudo o mais?
Ela não respondeu imediatamente, parecendo perdida nos próprios pensamentos. Por um segundo ele pensou que ela tinha baixado a guarda, que estava vulnerável… mas antes que sequer pensasse em se mover, o olhar dela se fixou nele de forma ameaçadora. Daisuke engoliu em seco. Por fim, ela respondeu.
— Eu ainda não decidi se você vai servir para o que eu quero. — Antes que ele pudesse fazer qualquer outra pergunta, ela disse alguma coisa em japonês, e uma criada muito velha entrou no quarto. A mulher se moveu em direção a Daisuke. — Mas nós vamos ter muito tempo pra isso.
A velhinha começou a guiá-lo para a porta.
— Espera, o que…
— Você está dispensado por hoje, Daisuke.
E assim teve início a noite sem fim.
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