Sonhar de novo o que nunca sonhei.txt

Minha edição especial de Natal acabou morfando numa edição especial de amigo secreto: depois do evento O Texto e o Tempo, me juntei ao grupo de Newsletters BR, e decidimos fazer um amigo secreto no formato de cartas entre os escritores.

Uma perspectiva assustadora, preciso dizer. Eu nunca escrevi uma carta para uma pessoa que eu não conhecia — e por mais que eu veja por aí no Twitter, tenha assistido num evento, assine a newsletter, e tenha até respondido uma vez, estou longe de achar que “conheço” meu amigo secreto.

Meu consolo é que por mais que eu seja despreparada para iniciar uma conversa com seres humanos, eu acho que consigo conversar com textos… e os textos dele eu ando lendo durante a temporada inteira.

Não sou muito familiar com a cultura de amigo secreto, mas creio que é costume dar pistas sobre quem eu sorteei e deixar as pessoas tentarem adivinhar antes de entregar o presente? Bom, os parágrafos anteriores foram a minha tentativa de dar pistas.

Eu diria que entre os três primeiros parágrafos e o título do texto eu dei nada mais, nada menos do que sete pistas, e agora deve ser seguro revelar que: Arthur Marchetto da newsletter Ponto Nemo, esse texto inteiro é uma carta para você!

Osasco, 14 de dezembro de 2022

Oi, Arthur!

Ler os oito episódios da Ponto Nemo sobre sonhos foi uma experiência interessante porque eu sou uma pessoa que sonha. Claro, em teoria todo mundo sonha. Mas a minha mãe, por exemplo, nunca se lembra do que sonhou — a não ser que tenha a ver com a família. Minha família por parte de mãe é a família com sensibilidade para a morte: sentir que alguém “puxou o seu pé” e descobrir que isso foi no horário exato em que a nona faleceu; “ouvir” quando a respiração de uma pessoa no quarto do lado da casa parou de respirar; sonhar que um parente morre, e acordar com a ligação anunciando o falecimento e — para a minha mãe, por causa da nossa religião — sonhar com os parentes mortos vindo cobrar a realização dos batismos que eles não tiveram em vida.

Eu não sei se herdei isso, mas ao contrário da minha mãe eu sonho sempre, e quase sempre me lembro do que sonhei ao acordar. Quando acho o sonho interessante o suficiente, faço um esforço para segurá-lo na memória por mais tempo: envio uma mensagem para um amigo com quem tenho conversas doidas, escrevo um fio no Twitter, levanto e procuro um membro da minha família que já esteja acordado. Eu sou testemunha do que você falou na sua newsletter sobre como tirar um tempo pra pensar no sonho e registrar (ou, no meu caso, compartilhar) nos ajuda a lembrar melhor deles.

E meus sonhos quase sempre são aventuras. De fato, minha primeira “série de livros” — umas seis histórias de 2-3 páginas cada que escrevi no Word aos nove anos — foi baseada em um sonho que eu tive. Nela, eu e o irmão de uma amiga (eu nem tinha contato com o menino direito, não sei porque sonhei com ele) éramos espiões (eu jamais zoaria uma criança de nove anos chamada Ana por usar “Espiana” como seu codinome de espiã, mas como a criança de nove anos no caso sou eu, estou aqui ficando vermelha só de lembrar).

Infelizmente os últimos dias me arrancaram da normalidade de um jeito que desconjuntou até os sonhos (eu contei que voltei pra casa dos meus pais porque quebrei o pé?), mas a verdade é que eu tenho uns sonhos legais. Melhor ainda, eu tenho a oportunidade de revisitar cenários de sonhos e ver a narrativa se desenrolar de formas diferentes… ou pelo menos eu acredito que eu faço isso.

Uma vez eu li que a sensação de déjà vu nada mais é do que o cérebro “salvando as imagens na pasta errada”. Em vez de colocar na pasta “coisas que estou vendo agora” ele coloca na pasta “coisas que eu vi no passado”, e quando o cérebro faz a busca básica de comparar a experiência atual com alguma experiência que vivemos no passado, é óbvio que ele encontra uma situação com 100% de similaridade: a situação que você está vivendo em tempo real, mas salva na pasta errada.

Quando eu acho que estou tendo um sonho pela segunda vez, sempre fica essa dúvida se eu realmente já sonhei com isso antes, ou se eu tenho déjà vu dentro dos sonhos. Parece muito conveniente que eu nunca consiga me lembrar quando foi a última vez que tive esse sonho, ou que seja exatamente um dos sonhos que nunca contei para ninguém antes de ele acontecer “pela segunda vez”, e que eu não tenha nenhum exemplo de revisitar um sonho que já contei pra alguém. Se a sensação de “eu já vivi isso antes” pode ser falsificada enquanto estamos acordados, por que não enquanto estamos dormindo?

Por outro lado, sonhos assim não são caracterizados só pela sensação de que são iguais. Muito pelo contrário, eu diria que o maior diferencial deles é serem diferentes! A sensação de déjà vu é uma espécie de gatilho que ativa o modo “sonhador lúcido”. Contei na Ponto Nemo uma vez: meu modo “sonhador lúcido” dificilmente controla o sonho, mas desfruta dele como um espectador desfruta de uma mídia: através da suspenção voluntária da descrença.

(Aqui eu preciso dizer: um sonho em primeira pessoa é uma tremenda de uma mídia)

Como espectadora, consigo ficar tão próxima ou tão distante da mídia quanto for necessário, e às vezes consigo reparar em diferenças que me fazem acreditar que estou vendo esses cenários oníricos pela segunda vez, e não apenas tendo um déjà vu. Eu tenho certeza de que da primeira vez que eu sonhei com o templo na caverna subterrânea — cheio de torres, dutos, escadarias e passagens secretas — eu não pensei em Mistborn. Da primeira vez que eu sonhei com ele eu nunca tinha ouvido falar de Mistborn. E da primeira vez, o único desafio eram os labirintos de escadas e passagens secretas. Quando voltei lá, me sentia confiante para navegar pelas passagens secretas… mas tinha Caras Maus ™ de guarda nas passagens principais. Queria dar mais detalhes, mas quanto mais eu penso nisso, mais misturo com outros sonhos que também envolveram escadarias e passagens secretas que eu tenho certeza que tive em mais de uma ocasião, mas que não tenho certeza se chegaram a se misturar com o labirinto subterrâneo.

A verdade é que todo esse relato não tem uma conclusão. É mais um fluxo de consciência que reflete as conversas internas que tive com a sua newsletter: déjà vu de sonho, o fato do meu pai ser um sonhador lúcido do tipo “ah, isso aqui é um sonho? Então eu posso lutar kung fu contra os mafiosos!”, o fato de uma das minhas memórias mais antigas estar meio misturada com um sonho, o sonho recorrente de estar em um carro desgovernado e ficar tentando descobrir onde é o freio… foi uma conversa longa, e 90% dela está só na minha cabeça, mas graças a essa carta hoje acho que pelo menos um pouquinho desse monólogo evoluiu para um diálogo.

Estou ansiosa para saber qual vai ser o tema da terceira temporada de Ponto Nemo, mas enquanto isso talvez eu leia a temporada um. Nada como sentar para ler sobre um assunto que você acha inquietante para se divertir um pouco. (Sim, tenho pavor de fungos vivos e respirando. Cogumelos, só na minha pizza)

E por enquanto é isso aí. Feliz Natal e Feliz Ano Novo.

Um abraço,

Ana.

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